Seis meses

O humor é uma estratégia poderosa de resistência contra as forças opressivas da sociedade
Ilustração: Aline Daka
01/06/2023

Junho
Eu concordo que é preciso levar a educação sexual para as escolas, mas vocês não podem negar que também é urgente, na sala de aula e mais ainda na esfera política, falarmos sobre o kitsch. É preciso vencer esse tabu, não podemos deixar o problema somente nas mãos de pais e responsáveis. A falta de um diálogo corajoso sobre o assunto contribui pra manter os jovens vulneráveis e mal informados. Se não cuidarmos de nossas crianças e adolescentes, certamente continuaremos tendo mais e mais adultos imbecilizados nas rodinhas sobre cinema, literatura, música etc.

Maio
O eu lírico de um poema (É) (NÃO É) o próprio poeta.

O narrador de uma ficção (É) (NÃO É) o próprio ficcionista.

De que lado estamos nesta nova cisão nacional?

Abril
Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém…
Sem ti correrá tudo sem ti.
Álvaro de Campos

No dia 18 de abril se comemora o Dia Nacional do Livro Infantil. Por que hoje? Porque foi neste dia e neste mês, em 1882, que nasceu Monteiro Lobato.

Durante décadas, Lobato foi considerado o único escritor brasileiro a produzir uma literatura de qualidade inquestionável voltada para as crianças. A maior parte dos escritores de minha geração e da geração anterior deliciou-se na infância com os romances do Sítio do Picapau Amarelo.

Eu mesmo comprei na Estante Virtual, tempos atrás, vários dos volumes ilustrados pelo André LeBlanc, pra reler. LeBlanc foi o melhor ilustrador desses livros.

Em minha memória afetiva o romance A chave do tamanho ocupa um lugar de destaque, ao lado de outras obras de ficção maravilhosa, entre elas Macunaíma e Cem anos de solidão.

Uma preocupação que vem agitando os grandes admiradores da obra de Monteiro Lobato — muitos deles, pesquisadores acadêmicos — é que essa obra, tanto os livros para o público adulto quanto os livros para o público jovem, está perdendo leitores. Parece que as novas gerações de leitores, incluindo os leitores-mirins, não estão mais interessadas em seus livros.

Os admiradores mais preocupados estão afirmando, num tom indignado, que até mesmo a turma do Sitio do Picapau Amarelo corre o risco de desaparecer da corrente principal da literatura brasileira.

Se isso for mesmo verdade…

Qual é o problema?

A vida não é um fluxo invencível de mudanças?

De constante, no universo, não há apenas a inconstância de todas as coisas?

No ocidente e no oriente, tantos milhares de autores e artistas muito apreciados em seu tempo desapareceram pra sempre… Ou porque foram perdendo o valor, ou porque foram vítimas dos desastres da História, e suas obras, apesar de valiosas, sumiram na poeira das guerras e dos terremotos.

As demandas subjetivas, estéticas, comportamentais, políticas e sociais das novas gerações não são mais as mesmas das primeiras gerações que se encantaram com as aventuras de Narizinho e Pedrinho, Emília e Visconde, Dona Benta e Tia Nastácia.

A simples ideia do desaparecimento de Monteiro Lobato me deixa triste? Certamente. Mas quando eu morrer, essa tristeza desaparecerá comigo. A tristeza de vocês também desaparecerá. Essa é a (única) beleza da morte: renovação.

Mas ainda não morri. Estou vivíssimo. E um dos jogos mentais que eu mais gosto de praticar, após preparar uma xícara de café, é ficar imaginando o futuro.

Deixo com vocês meu exercício de futurologia:

Em 2100 quase ninguém se lembrará de Monteiro Lobato, Ziraldo, Lygia Bojunga, Ruth Rocha…

Em 2500 quase ninguém se lembrará de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade…

Em 3000 quase ninguém se lembrará de Chaplin, Picasso, Beatles, Ella Fitzgerald…

Em pouco tempo, antes de esquecerem Jesus, Buda e Maomé, quase todos já terão esquecido Beethoven, Michelangelo, Shakespeare e Dante Alighieri.

Se a humanidade não se extinguir até lá, e se não houver nenhum retrocesso científico do tipo Idade Média dois ponto zero, no ano 5000 quase ninguém se lembrará do que eram o teatro, o cinema, a literatura, as artes plásticas, a música etc. Haverá outros tipos de arte, todas geridas por inteligência artificial.

No ano 10000 quase ninguém se lembrará de lugares chamados Estados Unidos, Rússia, China, Inglaterra, França, Índia, Japão, Brasil…

No ano 100000 haverá tantas pessoas-máquinas conectadas na rede universal da onisciente brainet e tantas pessoas-fungo conectadas na rede universal do onisciente micélio, que quase ninguém se lembrará do que eram os sapiens originais.

Querem que eu continue?

(Mas não se enganem, mesmo que esqueçamos Homero e Mickey Mouse, jamais esqueceremos Chacrinha, o Velho Guerreiro.)

Março
Vitória do humor, da pulsão de vida, vitória de Eros sobre Tânatos, finalmente.

Pela primeira vez — repito: pela primeiríssima vez! — torci bastante por um filme que REALMENTE ganhou o Oscar. Mas essa vitória me surpreendeu muitíssimo. Por dois motivos: Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo é uma comédia (eita!) de ficção científica (cacete?!).

Pessoas do tipo careta de conteúdo não consideram comédias uma Grande Arte Prenhe de Profundidades Verdadeiramente Profundas. Também não consideram a ficção científica algo que mereça ser levado a sério. Deu zebra no Oscar?!?

Deu zebra no Oscar, meus amores. O melhor longa-metragem de 2022 é uma comédia aloprada sobre universos paralelos, que competiu com os tradicionais dramas & tragédias prenhes de profundidades verdadeiramente profundas — e, outra surpresa, com uma tragicomédia até que saborosamente subversiva: Triângulo da tristeza.

Será que a mentalidade ocidental está mudando? Evoluindo?

Será que nossa sociedade finalmente está começando a reconhecer e valorizar a força estética do humor?

Será que a comédia, tão vilipendiada ao longo da História, finalmente está ocupando uma posição de prestígio no ranking dos gêneros, ao lado do drama e da tragédia?

Na verdade, em meu ranking particular dos gêneros, a comédia sempre esteve ACIMA do drama e da tragédia.

O que eu aprendi com Rabelais, Vladimir Propp, Bergson, Bakhtin, Ionesco, Douglas Adams, Henfil, Terry Eagleton, Rick & Morty e tantos outros sobre o humor, a comédia, o sorriso e o riso:

O humor nos devolve à infância.

O humor humaniza, dessacraliza.

O humor debocha do mainstream.

O humor é uma estratégia poderosa de resistência contra as forças opressivas da sociedade.

Fevereiro
Fidelidade histórica é a fraqueza do brasileiro? É o vício que nos impede de contar histórias sobre um pequeno quilombo de irredutíveis africanos — ou uma pequena aldeia de irredutíveis indígenas, se preferirem — que, com a ajuda de um feiticeiro e uma poção mágica, põe de joelhos a Coroa Portuguesa? Tipo Asterix e sua turma?

Janeiro
Este ano celebramos o centenário do nascimento de Sergio Porto, o impagável Stanislaw Ponte Preta.

Sergio morreu em 1968, aos quarenta e cinco do primeiro tempo. Fico imaginando, se ele ainda estivesse vivo, a festa que seria: CEM ANOS, porra!

Viver um século não é pra qualquer aventureiro, tem que ser profissional.

Então, é preciso muito sangue-frio pra abrir mão dessa honra gloriosa, e da festa sem fronteiras que a família, os amigos e o sem-número de leitores organizariam.

Lygia Fagundes Telles viveu mais de cem anos e abriu mão de seu centenário, da celebração nacional sem limites, nos jornais, na tevê, na web, na ABL, em toda parte.

Lygia Fez todos acreditarem que havia nascido em 1923, mas após sua morte descobriu-se que da certidão de casamento com o primeiro marido, Gofredo Telles Júnior, consta 19 de abril de 1918.

Impossível não ficar imaginando a autora, em 19 de abril de 2018, celebrando discretamente, com uma taça de vinho e um sorrisinho malandro, seu século de vida.

Olyveira Daemon

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho