Pequena byblioteka do LunaLaby (2)

Um arranjo geométrico de obras presas num forte abraço gravitacional — apesar do espaço-tempo que as separa — em sua dinâmica excêntrica-subversiva
Ilustração: Aline Daka
01/08/2021

À esquerda e acima de Santa Clara Poltergeist está A cachoeira das eras, romance de Carlos Emílio Corrêa Lima, de 1979.

Narrativa não-realista > linguagem caudalosa-barroca > personagens não-domesticados > enredo aloprado-esotérico-labiríntico-metafísico > diálogo paródico com as antigas tradições sobrenaturais amazonenses & orientais > tempo-espaço fantástico > são essas características reunidas que fazem de A cachoeira das eras uma estrela-irmã nessa mesma constelação excêntrica-subversiva.

À direita de Santa Clara Poltergeist está Piritas siderais, romance de Guilherme Kujawski, de 1994.

Narrativa realista-futurista > linguagem barroca > profusão de trocadilhos & neologismos > enredo aloprado-irreverente sci-fi > diálogo paródico com as antigas tradições sobrenaturais africanas > as hipergazetas > tempo-espaço fantástico > são essas características reunidas que fazem de Piritas siderais uma estrela-irmã nessa mesma constelação excêntrica-subversiva.

À esquerda de Santa Clara Poltergeist está Mnemomáquina, novela de Ronaldo Bressane, de 2014.

Narrativa não-realista > linguagem caudalosa-barroca > momentos de portunhol selvagem > profusão de neologismos > personagens não-domesticados > enredo aloprado-escatológico-labiríntico-irreverente sci-fi > tempo-espaço fantástico > são essas características reunidas que fazem de Mnemomáquina uma estrela-irmã nessa mesma constelação excêntrica-subversiva.

Abaixo de Santa Clara Poltergeist está Adaptação do funcionário Ruam, romance de Mauro Chaves, de 1975.

Narrativa não-realista > profusão de neologismos & palavras-montagem > personagens não-domesticados > enredo aloprado-escatológico-labiríntico-irreverente sci-fi > tempo-espaço fantástico > são essas características reunidas que fazem de Adaptação do funcionário Ruam uma estrela-irmã nessa mesma constelação excêntrica-subversiva.

[Agora percebo que talvez eu esteja transmitindo uma ideia errada da verdadeira configuração desse conjunto de obras. Se você ficou com a impressão de que no arranjo geométrico-astronômico das nove estrelas foi respeitada qualquer hierarquia de valor literário, pedirei que desfaça sem pestanejar essa equivocada impressão. Na bolsa de valores da sensibilidade, há estrelas esteticamente menos e mais valiosas, eu concordo. Mas esse jogo de valores não foi levado em conta quando o padrão dessa constelação revolucionária foi ficando mais e mais nítido. O que mantém essas obras presas num forte abraço gravitacional, apesar do espaço-tempo que as separa, é sua dinâmica excêntrica-subversiva. Desse modo, se vocês preferirem dispor as estrelas de outra maneira, fiquem à vontade.]

A partir dessa mínima amostra de obras divergentes do senso comum da literatura brasileira, vocês já perceberam, queridos leitores, que as narrativas em prosa ou verso que brilham intensamente na pequena byblioteka do LunaLaby [Laboratöryo de Lyteratura Lunätyka] apresentam mais de uma das seguintes características:

Narrativa não-realista ou realista-futurista ou realista-abstrata ou realismo psicológico-abstrato ou realismo relativista-cubista ou realismo-bricolagem.

Linguagem caudalosa-barroca ou hiper-subjetiva ou multifacetada ou dadaísta ou cubista ou concretista ou monocórdia-protocolar ou tudo isso misturado, ou seja, linguagem eclética, configurando um fluxo endiabrado de uma consciência não-domesticada.

Ausência de parágrafos, pontuação & maiúsculas ou paródia de português arcaico ou portunhol selvagem ou profusão de trocadilhos e neologismos e palavras-montagem e palíndromos ou uso recorrente da anáfora e do nonsense ou uso recorrente do enjambement ou narrador dramatúrgico ou narrador-montador ou tudo isso misturado configurando um fluxo endiabrado de uma consciência não-domesticada.

Personagens igualmente não-domesticados ou personagens autoconscientes (que sabem que são apenas personagens num texto literário).

Enredo espiralado ou fragmentado ou aloprado.

Tempo-espaço fantástico ou caleidoscópico ou deformado ou labiríntico.

***

Dialogando com as nove estrelas-irmãs indicadas acima, outras vinte e quatro se distribuem ao seu redor. Mas estão sempre em movimento, às vezes atravessando o coração da constelação, às vezes se distanciando do grupo central.

Nunca ficam paradas.

Para poder mencioná-las, precisarei tirar uma foto. Terei que congelar o movimento num provisório retrato em 3D.

[Cabaré Voltaire: reconhecimento de padrões.]

[ Arte, a-arte & antiarte. ]

Acima de Festa na usina nuclear podemos ver Amor, romance de André Sant’Anna, de 1998, e O natimorto, romance de Lourenço Mutarelli, de 2004.

Amor > narrativa não-realista > linguagem caudalosa-barroca > fluxo selvagem de uma consciência não-domesticada > uso constante da anáfora > enredo aloprado-escatológico-labiríntico-irreverente > tempo-espaço fantástico.

O natimorto > realismo psicológico-abstrato > narrador ora subjetivo ora dramatúrgico > uso recorrente do enjambement > enredo aloprado-irreverente > tempo-espaço labiríntico.

À direita de Festa na usina nuclear podemos ver Zero, romance de Ignácio de Loyola Brandão, de 1974, e Serafim Ponte Grande, romance de Oswald de Andrade, de 1933.

Zero > realismo relativista-cubista > linguagem & personagens multifacetados > enredo fragmentado > tempo-espaço labiríntico.

Serafim Ponte Grande > realismo relativista-cubista > linguagem & personagens multifacetados > enredo fragmentado > tempo-espaço labiríntico.

À direita de Piritas siderais podemos ver O mez da grippe, novela de Valêncio Xavier, de 1981, e O mamaluco voador, romance de Luiz Roberto Guedes, de 2005.

O mez da grippe > realismo-bricolagem > narrador-montador > enredo fragmentado.

O mamaluco voador > narrativa não-realista > paródia de português tropical arcaico > história alternativa.

À direita de Galáxias podemos ver Mar paraguayo, novela de Wilson Bueno, de 1992, e El astronauta paraguayo, poema narrativo de Douglas Diegues, de 2007.

Mar paraguayo > realismo psicológico-abstrato > linguagem caudalosa-barroca > portunhol selvagem > fluxo endiabrado de uma consciência não-domesticada > enredo espiralado > tempo-espaço labiríntico.

El astronauta paraguayo > realismo psicológico-abstrato > linguagem caudalosa-barroca > portunhol selvagem > fluxo endiabrado de uma consciência não-domesticada > enredo espiralado > tempo-espaço labiríntico.

Abaixo de Galáxias podemos ver Necrológio, coletânea de contos de Victor Giudice, de 1972, e mônica vai jantar, romance de Davi Boaventura, de 2019.

Necrológio > narrativas não-realistas > linguagem ora dadaísta ora cubista > uso recorrente do insólito e do nonsense > personagens não-domesticados > enredos aloprados-labirínticos-irreverentes > tempo-espaço fantástico.

mônica vai jantar > realismo psicológico-abstrato > linguagem & personagens hiper-subjetivos > ausência de parágrafos, pontuação & maiúsculas > enredo espiralado > tempo-espaço labiríntico.

Abaixo de Adaptação do funcionário Ruam podemos ver Grande sertão: veredas, romance de Guimarães Rosa, de 1956, e Papéis de Maria Dias, romance de Luci Collin, de 2016.

Grande sertão: veredas > realismo psicológico-abstrato > linguagem & personagens hiper-subjetivos > profunda invenção idiomática > investigação ontológica > enredo espiralado > tempo-espaço labiríntico.

Papéis de Maria Dias > realismo relativista-cubista > linguagem & personagens multifacetados > enredo fragmentado > tempo-espaço labiríntico.

(finaliza na próxima edição)

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho