Discurso de posse na ABL

Justiça e virtude não são qualidades intrínsecas, o que existe é a aparência — o importante é aparentar ser uma pessoa justa e virtuosa
Ilustração: Eduardo Souza
01/07/2025

Venerada senhora presidente, honoráveis acadêmicos, estimados fidalgos de Caladan, prezados guerrilheiros de Yavin, queridos amigos aqui presentes:

Yabba-dabba-doo! É uma grande honra finalmente ingressar na Casa de Machado de Assis. Quem diria… Pertencer a um grupo de intelectuais atuantes, que têm como prioridade defender e promover os interesses de nossa língua e de nossa cultura, não conheço privilégio maior.

Meus nobres pares, vocês sabem, eu também sei: a tradição manda que eu comece recordando os bravos guerreiros que me antecederam na Cadeira 42, número emblemático, resposta final à Pergunta Fundamental da Vida, do Universo e de Tudo Mais. Conheço muito bem a tradição… Mas não pretendo, meus amores, cumprir esse glorioso ritual acadêmico. Os bravos guerreiros anteriores que se explodam. Gentinha minúscula, sem talento.

Recentemente, o acaso me abençoou com superpoderes. Não sinto mais fome nem sede. Vejam! Estou flutuando… Meu recente Prêmio Nobel de Literatura me elevou muito acima do pântano literário brasuca. No mês passado, me teleportei pra Suécia e discursei no Stockholm Concert Hall. A cerimônia de premiação foi incrível. Na ocasião, me entregaram uma medalha de ouro, um diploma e uma boa quantia em criptomoedas. Eeeh-laaa-hooo! A medalha, o diploma e as criptomoedas — e a afrodisíaca fama internacional — fizeram de mim o Super-Homem das Letras tupiniquins. Um ego maior que o mundo, radiante, honesto, à prova de balas e explosões.

Em sua espetacular autobiografia, Nietzsche defenestrou a modéstia, a falsa e também a verdadeira. Esse ato de supremo amor-próprio permitiu ao titã do pensamento ocidental escrever Por que sou tão sábio, Por que sou tão inteligente, Por que escrevo tão bons livros, Por que sou um destino. Em minha autobiografia, pretendo superar o mestre. Meus novos superpoderes me permitirão escrever não somente Por que sou tão criativo, Por que sou tão perspicaz, Por que meus livros são do balacobaco, mas principalmente Por que estou acima e além de qualquer julgamento literário.

Ganhar o Prêmio Nobel de Literatura foi uma grande surpresa. Pra mim e pra todos vocês. Mais do que isso: foi uma benção das estrelas. Do acaso. Dos deuses da justiça. A fama e a grana me permitirão atingir a tão desejada santidade. Não precisar mais trabalhar pra sobreviver, não precisar mais interagir socialmente, profissionalmente, essa liberdade me permitirá despir as pesadas vestes da civilidade. Da cortesia. Da gentileza.

Lembram do mítico anel de Giges? Justiça e virtude não são qualidades intrínsecas, o que existe é a aparência. Em nossa sociedade, o importante é aparentar ser uma pessoa justa e virtuosa… Nietzsche percebeu, bem antes de Freud, que não somos gentis, corteses, civilizados por vontade própria, mas por necessidade. Trata-se de uma estratégia de sobrevivência. Hu-haa! A fama e a grana me libertaram dessa necessidade. No more mister Nice Guy. Pra atingir a tão desejada santidade, antes me permitirei cultivar, por algum tempo, o egoísmo e a devassidão. Não dizem que o caminho para o paraíso passa pelo inferno?

Prezados acadêmicos e simpatizantes, esta será minha última aparição pública. Em algum momento me teleportarei pra uma ilha tropical onde planejo passar o restante de minha vida, bem longe da estúpida vida social literária. Mas antes de desaparecer completamente, planejo usar parte do dinheiro do prêmio pra financiar pequenas vinganças pessoais. Quero levar algum aborrecimento aos meus desafetos. Meramente por diversão. Se não for pra brincar de Conde de Monte Cristo, que utilidade tem o dinheiro? Então, meus conterrâneos, diletos adversários no infame jogo político, se vocês em algum momento me prejudicaram, me difamaram, se aproveitaram de minha generosidade ou menosprezaram minha literatura, negando-me resenhas e convites pra feiras, festivais e bienais, antologias e celebrações, esnobando meus livros nas principais premiações e nas listas de Melhores do Ano, da Década e do Século, vocês se preparem, meus amores… Haverá pedras no meio do caminho, muitas, de repente, abracadabra, não mais que de repente. Vingancinhas nível Edmond Dantes com alguma coisa de príncipe Hamlet e do Homem do Subsolo de Dostoiévski.

Fato: o livre-arbítrio é um mito. O universo é uma força cega e sem propósito, uma força predeterminada, num movimento infinito. A posição e o movimento de tudo o que existe, de átomos a galáxias, segue um roteiro primordial estabelecido antes do big bang.

Fato: O livre-arbítrio é somente uma ilusão. Somos conscientes de nossas ações, mas ignorantes das causas que as determinam. A vida humana parece aleatória, movida pelo acaso, porque ignoramos o roteiro primordial estabelecido antes do big bang. Decisões conscientes? Talento & disciplina? Jamais, meus fofos. Apenas sorte & azar explicam nossas vitórias & derrotas.

Fato: Vivendo num cosmos predeterminado, mas paradoxalmente mergulhados na ilusão de livre-arbítrio, nós, primatas evoluídos condenados à morte desde o nascimento, somos compelidos a estabelecer um propósito que dê algum sentido à vida. Mas até isso foi determinado muito tempo atrás.

Conclusão: pequenas vinganças pessoais — vingancinhas nível Edmond Dantes com alguma coisa de príncipe Hamlet e do Homem do Subsolo de Dostoiévski — são um propósito tão legítimo quanto qualquer outro, uma forma bastante racional de gastar o capital excedente, não concordam?

Após essa breve temporada de mui saudáveis & revigorantes vingancinhas, creio que já estarei pronto pra levar uma bem-aventurada existência de honesta misantropia, muito longe deste chiqueiro de vaidades.

Meu plano de aposentadoria, de afastamento da humanidade besta inclui:

§ Passar o resto da vida totalmente off-line.
§ Aperfeiçoar minha recém-adquirida habilidade de me teleportar.
§ Contemplar, no mesmo dia, a aurora numa paisagem isolada do Saara, o perigoso meio-dia num cantinho isolado da Floresta Amazônica e o crepúsculo numa paisagem isolada da Sibéria.
§ Reler minhas obras prediletas {os livros escritos por mim mesmo, é óbvio}.
§ Aperfeiçoar minha recém-adquirida habilidade de me comunicar com as plantas e os animais.
§ Apreciar minha recém-aperfeiçoada habilidade de rejuvenescimento {sim, queridos zumbis de vida curta, eu sou o mais novo Benjamin Button do planeta e viverei o dobro de tempo, ou mais}.
§ Trabalhar um pouco mais em minha Teoria da Gravitação Quântica, que reúne num só modelo as quatro forças fundamentais da natureza: gravitacional, eletromagnética, nuclear forte e nuclear fraca.
§ Após uns trinta ou quarenta anos de revigorante solitude, talvez eu comece a sentir a compulsão de fazer o bem à humanidade. Esse sem dúvida será o caminho que me levará à tão desejada santidade. Finalmente realizarei no mundo real um projeto já idealizado em minha ficção: o Santuário das Crianças. “Uma ilha espetacular para abrigar todas as pequenas & doces criaturas negligenciadas, espancadas, abandonadas, abusadas, estupradas, vilipendiadas, um espaço seguro, um espetáculo espetacular, distante da fome, do frio e da selvageria dos infames adultos. E também um cinturão espetacular de máquinas de guerra em torno da nova ilha, em torno de nossa espetacular Neverland, um cinturão espetacular criado pra impedir que a violência dos adultos jamais alcance o santuário das meninas e dos meninos que através dos séculos não crescerão nem envelhecerão nunca necas nadinha de nada.” {Arkänone taröntyko > a temperança}

Olyveira Daemon

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho