Três décadas de Estorvo

Romance de Chico Buarque é um livro complexo, com inúmeras camadas interpretativas
Chico Buarque, autor de “Anos de Chumbo e outros contos”
01/07/2022

O traço mais importante de toda a produção de Chico Buarque, tanto na prosa quanto na poesia (pois o letrista é de fato um poeta), é a força da palavra. Chico é um competente artista da palavra. Sabe extrair dela a música e o sentido mais exato, sabe criar imagens surpreendentes. Um balanço que se faça dos 30 anos do lançamento de Estorvo (1991), primeiro romance de Chico, é bastante positivo, já que o livro foi recebido com aplauso por críticos renomados e ainda é muito estudado em universidades, estando entre as obras de ficção mais significativas da literatura brasileira contemporânea. Quando lançado, Estorvo gerou muita expectativa. Houve aqueles que apostaram que o romancista se equipararia ao compositor, que um daria continuidade ao outro. Mas são coisas diferentes. Nas letras Chico é mais claro, estabelece uma comunicação mais fácil com o seu público; nos romances, especialmente em Estorvo, há mais nebulosidade, as coisas são mais densas, a linguagem é mais cerrada. À transparência do compositor contrapõe-se a opacidade e/ou densidade do romancista. Densidade, todavia, que não impediu a popularidade dos romances de Chico. Do ponto de vista técnico, de estrutura narrativa, Estorvo é singular, nenhum dos romances posteriores a ele trouxe um personagem apático, que deambula feito um autômato, na condição radical de quem se abstrai da realidade. É um livro complexo, com inúmeras camadas interpretativas. Outro fator importante do livro é a sobriedade do estilo e a técnica narrativa, na qual se destaca o ângulo com que as situações vividas pelo protagonista, algumas delas absurdas (ou até hipotéticas), são flagradas. E o livro é intenso do início ao fim. Depois de Estorvo, vieram Benjamim, Budapeste, Leite derramado, O irmão alemão e Essa gente — todos analisados/interpretados por uma série de pesquisadores brasileiros e estrangeiros no livro Chico Buarque o romancista, que organizei em 2021 para a editora Garamond, do Rio de Janeiro. Chico é hoje um dos mais importantes romancistas da língua portuguesa, tendo recebido de Antonio Candido (em carta/depoimento que generosamente me enviou para constar do livro que organizei em 2004 Chico Buarque do Brasil) a seguinte avaliação: “Os romances [de Chico] são densos, sem concessões, muito inventivos, com um toque pouco frequente de originalidade”.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho