(…) tão nítida a forma que não se vê (…)
Há um rio de dor que percorre o subterrâneo das palavras. Como naquelas condutas de água das casas antigas, este caudal vai corroendo por dentro, criando fissuras, moldando o corpo conforme as mazelas que deixa pelo caminho, determinando cada passo no vazio de uma eternidade, revelando vozes que se querem inteligíveis, mas que, por vezes, se apresentam como ecos longínquos.
Há um fio condutor na corrente sanguínea de cada poeta, que costura, ponto por ponto, cada milímetro da construção da sua linguagem. Todo o crescimento é um ato de dor, é um compromisso de libertação. Crescer pressupõe a coragem de trocar de pele, e abandoná-la sem, no entanto, renegar as marcas que sempre estarão visíveis.
Há um fio de dor, um rio que corre por dentro do corpo da escrita de Rita Pitschieller Pupo. Um cordel que, aparentemente, não é áspero sobre o papel, pois que é límpido e higiênico; mas que é uma ilusão de ótica, já que cada palavra escolhida com precisão cirúrgica é a exata medida daquilo que se quer ocultar.
A palavra à vista não é a mesma que se esconde sob o imenso manto de azul espalhado pelo seu livro, que oscila como ondas de um cardiograma em constante ebulição. E, portanto, não está ao alcance de todos; cada leitura implica olhos desarmados. Ler a poeta obriga-nos também a despir a pele, a retirar o véu de certezas que nos cobre os olhos, a não ter pudores caso não alcancemos a sua fonte interior.
Cada vez que se volta ao seu livro, com olhos de semear, é um passo em frente no cadafalso, para uma morte simbólica, pois ler é viver no abismo de emoções que se nos apresentam, para que regressemos à superfície renascidos, e, por vezes, mais fortes. Cada leitura desses poemas, do livro Atirar um osso à espera, é deixarmo-nos levar pela torrente, pois só assim este osso deixará de ser tão polido, hermético ou inacessível.
O que vai no seu interior, o tutano saboroso, mesmo que agreste, é o que interessa, é o destino final de cada leitor, mas também o bilhete primeiro de uma aventura imprevisível. Por vezes a porta está entreaberta e é preciso forçar a entrada, espreitar para dentro do escuro, descortinar na penumbra algo que esteja mais definido na imagem. O leitor acabará por descobrir que, afinal, este osso pertence ao seu próprio corpo; pois há poemas/livros, que são rasgos de luz por entre as nuvens, e nos retiram, sem piedade, o tapete sob os pés. Na verdade sempre estivemos nus, porque poucas vezes olhamos tão profundamente o fundo lodoso deste rio que nos navega.

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