Romance consciente

“O avesso da pele” apresenta um catálogo de preconceitos que nos envergonha e nos alerta para situações que muitas vezes fingimos não ver
Jeferson Tenório, autor de “O avesso da pele”. Foto: Carlos Macedo
21/09/2020

Em um ensaio clássico, o mais engajado dos escritores mundiais da época, Jean-Paul Sartre (1905-1980), definia como tarefa da literatura doar uma consciência infeliz ao fruidor: “fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele” (Que é a literatura?). Embora haja um racismo horroroso no Brasil, poucos escritores e escritoras negros e negras conseguiram oportunidades de produção literária para traduzir enquanto arte da palavra as relações sociais desumanas de todo um grupo, o mais representativo do Brasil. Desde Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), de Lima Barreto, a mecânica racista como forma de destruir biografias negras vem sendo denunciada, mas apenas mais recentemente, com um maior acesso à universidade e um maior debate sobre o tema da representação, está surgindo uma produção literária consistente que denuncia a forma como os negros são maltratados no país.

Este novo romance brasileiro, que poderíamos chamar de romance consciente, começa a contemplar visões internas do ponto de vista racial e trazem uma marca política explícita. Escrever ficção é se posicionar sobre as discriminações sofridas. Com a interligação mundial por meio das notícias, movimentos de direitos de minorias de outros países fortalecem esta escrita étnica, que enfim encontra espaço em grandes editoras. É um momento rico de cartografia de escritores e escritoras de origem africana.

Com uma produção até agora mais local, no Rio Grande do Sul, Jeferson Tenório ganha merecida projeção com seu romance O avesso da pele. Enquanto tipologia, tende a ser um romance de formação. Como, em uma sociedade impiedosa, um intelectual negro pode construir a sua biografia. A grande inovação que Tenório acrescenta ao gênero é que o narrador não pode contar-se, pois está morto. De maneira estruturalmente simbólica, o romance começa e termina com o filho, distanciado familiarmente, mexendo no armário do pai morto. É com as poucas coisas deixadas por este professor de escola pública, leitor de grande literatura, que o filho vai ter que reconstruir a figura paterna, preenchendo os vazios para que ela não seja silenciada. Por isso, Pedro se dirige ao pai morto, Henrique Nunes, para contar-lhe o que seria a sua própria vida. Contar para o outro, e para si mesmo, neste simulacro de diálogo, é ato catártico, uma reconstrução biográfica possível de uma família negra, desde os sofrimentos passados pelos avós, a luta do pai para se fazer um professor de português, e a consequente atuação sofrida nas escolas públicas de periferia, até chegar ao tempo de Pedro, que cursa arquitetura.

A voz narrativa tem uma grande suavidade, tão necessária para constituir-se como afeto quando fala de temas tão tristes. Pedro não se coloca no romance como centro, destacando o conjunto familiar de que faz parte, tanto que, no final, em um momento de orfandade traumática, ele encontra apoio em uma tia que era mais negra do que ele e ainda sofria discriminação pela obesidade. É um momento mais do que de afeto familiar, e sim de identificação com o grupo, o que vai desencadear a narrativa que o leitor acabou de ouvir. Com a vida e a morte do professor de escola pública Henrique Nunes (aliás, uma experiência biográfica do próprio autor, professor de língua e literatura na rede pública de ensino de Porto Alegre), conhecemos todo o sistema de negação de seus familiares pela cor de sua pele. Há um catálogo de pequenos e grandes preconceitos que são apresentados ao leitor, e que nos envergonha enquanto sociedade, nos alertando para situações que muitas vezes fingimos não ver. O romance tem como mote desmontar estas situações, tirando delas uma naturalização ou uma invisibilidade que impendem que sejam combatidas.

Assim, trata-se de uma obra com uma força progressista muito grande, que se organiza a partir de algumas palavras-chave: racismo, preconceito, cor da pele. Em um momento de autoconhecimento da mãe de Pedro, há esta consciência de um valor humano além da aparência: “cada pessoa é uma pessoa e nunca deixem te diminuírem porque você é negra, ela (Madalena, que criou sua mãe) disse […]. A pele fora nomeada, a existência ganhara sobrenome”. Os conselhos do pai também eram neste sentido. Quando Pedro tem nove anos, ouve a lição de que deviam lutar porque os brancos haviam tirado quase tudo deles. “É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo”. A narrativa de Pedro vem demonstrar o avesso da pele, a humanidade, a grandeza, os sonhos, as decepções, o heroísmo de um grupo que é sempre julgado e eliminado, tanto do ponto de vista social quanto vital, por sua cor.

Mostrar o pai se divertindo, os namoros certos e errados, a descoberta de grandes autores, a paixão juvenil equivocada (com uma moça branca), a união com a esposa também sofrida, no breve casamento, e depois o encontro amoroso com uma colega da escola com a marca de uma quase morte, todas estas vivências e outras dão uma densidade humanizadora a pessoas que são julgadas e previamente condenadas apenas pela pele. Este movimento narrativo, portanto, tem mais do que a função de contar uma história, buscando antes dotar de espessuras humanas corpos que são tidos como alvos de ódio.

A condição negra retratada no livro não é genericamente brasileira, recai sobre ela o peso da localização geográfica. Porto Alegre é definida como “uma cidade racista”. Um pouco para frente, Pedro lembra: “No sul do país, um corpo negro será sempre um corpo em risco”. Esta intensificação do risco se concretiza no final, em que Henrique Nunes, em um ato que lembra os princípios de resistência pela não violência pregados por Mahatma Gandhi, se faz um herói para escancarar a rejeição culturalmente introjetada no imaginário da polícia e dos brancos em geral contra uma raça. O pai faz de sua crença na literatura uma afirmação de civilização contra a barbárie que o vitimiza. A cena final remete ao crime bárbaro da polícia norte-americana contra George Floyd e liga este romance ao grande movimento internacional de direitos humanos.

O avesso da pele é assim uma obra necessária, contundente, que nos reumaniza ao mesmo tempo em que nos tira qualquer inocência diante da máquina racista que não para de destruir vidas das mais diversas formas.

O avesso da pele
Jeferson Tenório
Companhia das Letras
189 págs.
Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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