Romance brasileiro: lixo e literatura

Observando o romance brasileiro, podemos identificar uma alteração brusca a partir dos anos 1980
30/10/2019

O romance se viu transformado nas últimas décadas no grande ponto de diálogo entre culturas, dando visibilidade a referenciais periféricos ao circular fora de seu lugar de origem. Orhan Pamuk, em O romancista ingênuo e o sentimental (2011), destaca o papel atualizador do romance, que se dirige a públicos diversos, em sociedades as mais afastadas, cumprindo uma função que poderíamos definir como civilizadora. Conclui ele: “A comunicação através da literatura, dentro ou fora do Ocidente, realiza-se predominantemente através do romance”.

Se ele ocupa uma centralidade como gênero, esta posição está gerando um discurso crítico de negação. Depois de sua morte ter sido sucessivamente decretada, em outros momentos históricos, surge uma nova onda de rejeição ao gênero. Para parte da crítica, ele se tornou o avesso da arte, tal como se pode ver no ensaio Não incentivem o romance (2007), de Alfonso Berardinelli, para quem o romance se encontra no campo da produção massificada. Neste ensaio, ele mostra a passagem da autonegação da arte do Novo Romance à segunda juventude deste gênero empreendida pelos narradores latino-americanos (ai de nós!), que se impõem pela grande quantidade de fatos para contar. Este é o momento de otimismo consumista em arte e faz “parte daquela disseminada democracia cultural, fatalmente hipócrita, que deve oferecer a todos a possibilidade ou a ilusão de ser tudo: até romancista. Ou seja, a democracia mata o romance ao incentivá-lo”. Sua postura se faz assim contrária à de Orhan Pamuk e de outros romancistas e críticos que encontram no romance uma forma de falar a auditórios mais heterogêneos.

Observando o romance brasileiro, podemos identificar uma alteração brusca a partir dos anos 1980. Nas duas décadas anteriores, havia uma polarização entre o romance experimental e o político. A linha de força experimental se dividia em dois núcleos, o de natureza mais racional, que tem em Avalovara (1973), de Osman Lins, um grande representante, e o de natureza mais dionisíaca, que pode ser vista em Galvez, Imperador do Acre (1976), de Márcio de Souza. No outro polo, o romance poderia ser político dentro da gramática realista, como Quarup (1967), de Antonio Callado, ou político-alegórico, caso de A hora dos ruminantes (1966), de José J. Veiga. Nestas duas modalidades, o experimentalismo funciona como negação da linguagem romanesca como estratégia para sabotar a sociedade — e o romance político como uma forma direta ou alegórica de crítica, mas sem romper totalmente com os códigos.

Nas últimas três décadas, opera-se uma integração do mundo pelo consumo. Uma energia internacionalista se intensifica e o romance brasileiro se capturado pelo mercado. As regras de produção dialogam de maneira mais explícita com as formas de recepção. Talvez possamos identificar hoje cinco grandes linhas de força, vendo de que forma este formato atende e nega o mercado, num processo dialético.

 1. Romance e transgressão
 Vinculados ainda a uma visão de autonegação própria da modernidade crítica, alguns romancistas se valem do gênero para questionar a linguagem. Essa transgressão pode ser temática, quando a escolha de um universo, um grupo social ou de um tipo de personagem cria um choque no leitor inadvertido. Mas pode ser também de linguagem ou de estrutura, permitindo que se questionem as formas de narrar, exercendo assim uma negatividade estrutural que é crítica em relação à sociedade. Em alguns autores, há a sobreposição destas duas formas de transgressão, a temática e a estrutural, numa dupla negatividade. Esta linhagem é a mais prestigiosa tanto na academia quanto nos meios de comunicação, pois vincula o romance de hoje a valores de vanguarda que verticalizaram as artes. No entanto, esta função transgressora não está mais no contexto anterior, e sim dentro de um mecanismo altamente industrial, ou seja, atende a um desejo de consumo de arte próprio de um público literariamente letrado. Ela é mais uma grife, está mais ligada a uma ideia de sucesso, de prestígio, do que propriamente uma postura crítica. É uma espécie de niilismo programático, escrito ao gosto de certo público.

 2. Romance como ensaio
 Com o fechamento dos discursos críticos, produzidos mais para o consumo intramuros das universidades ou para um leitor especialista, e havendo na sociedade com mais acesso à escolaridade um desejo de conhecimento crescente, reforçado pelas informações tumultuadas via redes sociais, surge um ambiente de consumo de romances artisticamente dissertativos, em que há uma reflexão teórica sobre os mais variados assuntos, dos hábitos de outras sociedades à cultura literária. Estruturalmente, este romance coloca no lugar do enredo uma preocupação com a discussão de ideias, funcionando como um ensaio com estrutura narrativa e com linguagem literária.

 3. Romance como história
Ainda dentro deste binômio informação e fruição, uma parte considerável dos romancistas passou a produzir narrativas localizadas em outras temporalidades, levando a leitores transliterários uma leitura moderna de fatos históricos, não raro transplantando para lugares e tempos remotos mentalidades atuais. Com uma variedade e oferta muito grande de episódios romanceáveis, o Brasil se mostra uma fonte inesgotável de material de ficção, o que permite uma produção que fala do passado para referir-se diretamente ao presente. Assim, o romance histórico só é histórico até certo ponto, atendendo a urgências de compreensão do agora, da identidade nacional.

4. Romance como entretenimento
A conexão com o cinema e televisão, que são os grandes formadores de público para o romance, levou a uma aproximação entre narrativa e roteiro. O fato de no Brasil também ter uma teledramaturgia forte, permitindo uma profissionalização de escritores fora da literatura, intensificou o impacto de meios visuais sobre os narrativos. Muitos escritores assumem esta conexão explícita, mas sem renunciar a um desejo de fazer grande literatura, tal como podemos ver no romance demipolicial, representado por um Rubem Fonseca, que se assume como um cineasta frustrado. O escritor se apropria de alguns expedientes do entretenimento com um intuito de chegar a um público maior sem abrir mão da tarefa da literatura que é a de doar uma consciência infeliz — na definição de Sartre — para o fruidor.

5. Romance como vivência
 Uma das linhas dominantes na produção nacional é o romance autobiográfico, autoficção ou biorromance, ou romance do lugar de fala, que se favorece de dois fatores, um de natureza internacional e outro local. As conexões entre ficção e autobiografia, comum em momentos outros de nossa história — como em O ateneu, de Raul Pompeia, Recordações do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto, e Menino de engenho, de José Lins do Rego — sofre uma radicalização nas últimas décadas. O livro que faz esta passagem do autobiográfico disfarçado (muitas vezes mal) para o autobiográfico escancarado é Quase-memória, quase-romance (1995), de Carlos Heitor Cony, cuja ideia de fronteira fica explícita no título. De lá para cá, uma quantidade muito grande de obras ampliou esta vertente, fazendo dela uma das mais representativas da produção contemporânea. Esta tendência se explica por nossa tradição, dominada pelo gênero da crônica literária, afeita às confissões de um eu que quer se mostrar. O brasileiro, principalmente no espaço da crônica, usa de forma intensa e desinibida a primeira pessoa do singular, estando assim predisposto para a autoficção. Isso que era uma tendência histórica local se intensifica com a era da escrita da internet, que estimula o uso da primeira pessoa, por meio da qual se constroem teorias narrativas do eu. A confluência destes dois fatores produziu um boom da autoficção no país. Além desta modalidade focada na heroicização do narrador que se confunde com o autor, há ainda outra modalidade do romance autobiográfico, coletivista, que são as narrativas focadas em lugares e linguagens sociais de onde o autor vem. O autobiográfico aqui não está tanto na ficcionalização das experiências de um eu, mas na valorização de um lugar-linguagem. São narrativas da periferia, de grupos sociais marginalizados. Neste grupo, o automimetismo de linguagens e de trajetórias é de natureza grupal.

Em todas estas linhas de força se dá, de modo mais ou menos intenso, uma ocupação dos espaços narrativos do entretenimento, atendendo a uma expectativa de mercado, mas nos bons autores isso nunca leva a um amortecimento das tensões estéticas e sociais. Estes, mesmo escrevendo em diálogo com o público, e não para romper com ele, buscam uma reflexão mais ampla sobre a condição humana, fornecendo ao auditório um pouco daquilo que ele espera como arte e como universo de referência.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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