A invisível bondade

Faltam nos relatos de nossos tempos os personagens do bem, que incorporam uma humanidade restauradora
Kent Haruf, autor de Bênção
30/05/2020

Existe um padrão de romance que caracteriza a contemporaneidade e que será, no futuro, uma praga epigonal, ignorado pelos leitores. Romance em que a descrença programática é a marca principal, orientando todas as ações narrativas, indo do personagem (geralmente narrador) deprimido, que se expressa contra a existência, ao pequeno ou grande monstro que rouba, mata, oprime etc. Estes são os heróis e anti-heróis de um momento decadente da arte narrativa.

Para contrabalancear este modismo, faltam nos relatos de nossos tempos os personagens do bem, que incorporam uma humanidade restauradora, que nos coloque em paz com a existência e suas tragédias. A ideia de uma personalidade atormentada e atormentadora prevalece no que se produz hoje, pois há um medo dos autores de parecerem ingênuos ou idealizantes e se afastarem da arte. Medo que não se justifica.

É na contramão desta tendência que se localiza a obra de Kent Haruf (1943-2014), que tem lançado no Brasil mais um de seus poucos romances — Bênção, em tradução de Sonia Moreira. O título já indica uma situação incômoda para os bem-pensantes do agora. O termo religioso não é usado com função irônica. Aliás, a ironia, talvez o recurso mais batido da literatura moderna, não entra neste romance poderoso enquanto forma de zombar do humano. E este não é o único desconforto que o livro cria ao leitor afeito à cenografia literária do centro do campo literário. Bênção se passa em uma cidadezinha do interior do Estados Unidos, não muito longe de Denver, e tem como personagem principal o dono de uma loja de ferragens que mora em uma área rural.

De Hemingway a Raymond Carver, a literatura norte-americana moderna nos ensinou a olhar para estas vidas desinteressantes e encontrar nelas a densidade humana sem a qual não existe a grande obra de arte. Parece óbvio defender certos princípios, mas vivemos tempos em que é preciso afirmar e reafirmar o óbvio. O literário não advém daquilo que o autor faz com a linguagem, mas do que a linguagem faz com o leitor. Este é o caso de Bênção. Não há bossas de escrita, não há inovações estruturais descoladinhas, e muito menos grandes pretensões filosóficas ou literárias. O romance se organiza em torno de um homem comum, Pai Lewis. Ao ter incorporada a palavra Pai como substantivo próprio ele se torna uma espécie de ícone do líder familiar, do chefe de família.

Self-made man, Pai Lewis se orgulha de ter vindo de uma origem pobre, casado com a mulher que sempre amou, e que nunca quis trair, e se caracterizar por uma retidão de caráter extrema tanto nos negócios como nas relações pessoais. É uma pessoa desinteressante, já de idade, afastada dos filhos, que buscaram construir uma vida longe de seu poder. Tem uma boa casa, um bom carro, um negócio sólido e uma respeitabilidade na paróquia — sim, o romance acontece num grupo social de devotos.

Este universo de pequeno sucesso social é posto em questão quando Pai Lewis descobre que tem um câncer e pouco tempo de vida. O romance trata da reconstrução de sua biografia depois da doença. É uma busca de justiça como forma de morrer em paz. Não há desesperos no romance, embora cada página esteja carregada de emoção. Enquanto tenta reparar erros que ainda não foram enfrentados, ele vai se despedindo do mundo. Uma das cenas mais tocantes é o passeio de carro com a esposa e a filha que voltou para cuidar dele. Pai Lewis quer ver pela última vez os locais amados. Ao final, leva as duas a uma montanha de onde se vê a região toda, e pede para que enterrem algo dele ali. Este amor pela cidade, onde existem conflitos ferozes descritos em episódios com outros personagens, pois o romance é multifocal, dá este tom de beatitude apesar de tudo. O mundo é mau, nós tomamos várias atitudes que prejudicam as pessoas, somos seres vaidosos e agressivos, mas há espaço para gestos de reverência beatificadora.

Esta reparação de erros se soma ao seu desejo de lembrar de pessoas, de pensar na vida delas como uma coisa valiosa para o mundo. Num outro núcleo, comunicante com o principal, o reverendo Lyle é expulso da igreja por suas ideias humanitárias em tempos de guerra e também persegue a beleza da vida das pessoas comuns, em longos passeios noturnos pela cidade para contemplar tais existências: “Eu pensei que fosse ver pessoas sendo agressivas. Cruéis. Maridos batendo em esposas. Mas eu não vi nada disso. Talvez isso tudo aconteça atrás das cortinas”. Ele próprio será agredido por jovens revoltados com seu discurso de perdão aos inimigos com quem os Estados Unidos guerreiam, mas isto não altera sua busca e prática bondosa.

Em uma cena, de outro núcleo narrativo do romance, mulheres velhas, de meia idade e uma menina tomam banho juntas, nuas, em um bebedouro para o gado. Há uma comunhão profunda nestes corpos descritos em suas belezas e misérias, num mostruário do apogeu e da decadência física. Neste mesmo bloco, a filha de Pai Lewis, que perdeu uma filha num acidente, conversa com uma amiga que fala como as vacas sofrem para amamentar os bezerros que são agressivos nesta hora do alimento. “Sim, mas é gostoso amamentar, disse Lorraine. Você tem a sensação de que o mundo é bom.”

É esta sensação que marca todo o romance, em que há vários conflitos não resolvidos, e que não conduz a uma visão perversa da humanidade. E estão lá os seres incompletos, traídos, emocionalmente amputados, mulheres e homens solitários, pessoas que trabalham duro para a sobrevivência, pois em nenhum momento Kent Haruf falseia as coisas, principalmente em um período em que os Estados Unidos estavam numa guerra de ódio (quando não estão?) com o mundo árabe, enviando seus jovens ao campo de batalha. Subjacente a esta perversidade, Haruf vai descobrindo a silenciosa grandeza humana, muitas vezes invisível, mas com uma potência salvífica que mantém a sociedade unida.

Nesta perspectiva, Pai Lewis se aproxima ao máximo deste estado de espírito, conquistando uma grande densidade humana, logo ele que representa o capitalismo, pois é o patrão voltado ao lucro. É também o homem que não aceitou a homossexualidade do filho para sempre perdido. Por tudo isso, quer preparar-se para a morte, contaminando todos ao seu redor com este sentimento pacificador.

Construído com grande habilidade narrativa, com um domínio da linguagem coloquial, uma estrutura simbólica muito bem urdida, e ao mesmo tempo nada forçada, Bênção é um daqueles romances que nos reinventa emocionalmente, fazendo da literatura mais do que um jogo de linguagem e enredo.

Bênção
Kent Haruf
Trad.: Sonia Moreira
Rádio Londres
315 págs.
Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

Rascunho