A antigramática da infância

"O menino do mato que engoliu Brasília" é um dos grandes livros brasileiros sobre a infância
Nicolas Behr, autor de “O menino do mato que engoliu Brasília”
30/08/2019

Quanto mais oficial a cidade, mais irreverente a sua literatura? A resposta pode ser sim se se levar em consideração a densidade de poetas marginais que Brasília abriga, contando entre eles três figuras maiores desta corrente antiestética: Chico Alvim, Eudoro Augusto — estes um pouco mais escondidos — e o sempre presente Nicolas Behr — aliás, Nikolaus Hubertus Josef Maria von Behr. O nome nobre exigia um destino sério para o filho de imigrantes europeus que acabou contaminado pela infância e pela adolescência no interior selvagem do Brasil. Com a posterior mudança para Brasília, persistiu a identidade ligada aos fenômenos de alegria em meio à natureza e à irreverência como postura de linguagem, florescendo o poeta e ecologista Nicolas Behr, com o nome revisto e mais diminuído (Niki), como é próprio deste movimento. Antônio Carlos de Brito virou Cacaso. Ricardo de Carvalho Duarte, Chacal. Francisco Soares Alvim Neto, Chico Alvim. Simplificações afetivas de tratamento que revelam uma poética.

O maior legado desta geração foi tirar a solenidade do verbo. E, para isso, era preciso romper com a seriedade dos próprios nomes. E também com a seriedade do suporte poético. Se a falta de um sistema editorial para a poesia jovem dos anos 1970, auge da ditadura militar, era uma condicionante para os livretos mimeografados, estes reforçavam o projeto político-poético da época. Os livros ganharam um formato panfletário, permitindo a sua transmissão de mão em mão em eventos culturais, principalmente em shows, como se fosse uma troca de senhas. Se fez, enquanto objeto, material subversivo, e não só pelo conteúdo. Por portar tais livretos, Niki foi preso pelo Dops naquela quadra de trágica memória.

O conteúdo “rápido e rasteiro” (título de um poema de Chacal) também estava em sintonia com a urgência de tempos bicudos, em que ler e escrever não podiam ser atividades sem risco, na paz da biblioteca. Tudo acontecia na rua, no movimento, na célula literária. Os livros tinham que ser consumidos instantaneamente, e depois desaparecer. Eram material fungível.

O grande sucesso de Nicolas foi sua estreia, Iogurte com farinha (1977), impresso em pequenos lotes, sob demanda, até porque estocar estes caderninhos seria prova inconteste de subversão. Seguiram-se mais coletâneas: Grande circular (1978), Caroço de goiaba (1979), Chá com porrada (1978) e Bagaço (1979). Estas publicações ganharam uma versão fac-similar pela Semim Edições (Brasília, 2018), em uma caixinha intitulada Sete sete sete nove — mantendo assim a precariedade gráfica da estreia.

Tais improvisações devolvem ao leitor o grau de insubordinação editorial de um autor feito impressor, designer gráfico acidental, vendedor ambulante de sua poesia. Nicolas povoa os espaços mortos do livro. O exemplo mais feliz desta tarefa de artista múltiplo é como ele subverte a ficha catalográfica como oportunidade estética e política. Ao localizar a origem geográfica das edições, ele faz uma poesia invasora.

“Brasília, capital da desesperança, natal de 77”.
“Brasília, vê se toma uma atitude, pô! julho de 79”.
“Brasília, quatro pastéis e um caldo, junho de 79”.
“Brasília, viva o pastel da rodoviária, maio de 79”.

A repetição do topônimo é mais do que um dado técnico. O poeta e a cidade estão em diálogo. Ela se personifica nestes lances amorosos. Será, desde sempre, a matéria lírica por excelência de Nicolas.

Fica evidente, tanto do ponto de vista material (forma de impressão, desenhos, textos manuscritos) quanto de linguagem (um olhar de primeira vez) a natureza infantilizadora do código marginal. Os poetas se viam como crianças crescidas que cultivavam uma identidade incômoda, de recusa do mundo adulto e seus equívocos. A figura central desta vertente, enquanto linguagem, é a criança, o que liga estes autores a Oswald de Andrade (Primeiro caderno do aluno de poesia), Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade (Boitempo), numa verve primitivista. É este o mote memorialístico a partir do qual se organiza a nova antologia de Nicolas Behr — O menino do mato que engoliu Brasília (Entrelinhas, 2019). A história do menino nascido em Diamantino, onde viveu o tempo rústico, ao qual ele retorna pela palavra, é uma viagem impossível, já que: “o cometa volta/ a infância, não”. A conquista do passado se dá pela imaginação, na qual o poeta se sente mais presente do que quando volta fisicamente ao lugar do crime de ter sido: “será que preciso estar lá?// pela imaginação não vale?”. O livro é uma resposta a este questionamento. Sim, pela imaginação vale. Este retorno é uma ressurreição, uma reafirmação do menino, pois o poeta sente a vida adulta como existência póstuma: “a primeira/ morte/ é a da infância”.

A fase seguinte é a da adolescência em Cuiabá, com poemas inéditos. Aqui o menino se sonha geólogo e tem como ícone a bicicleta, que lhe dá lições de liberdade. As aventuras tomam todo o espaço existencial. E esta é a grande experiência poética, a da vitalidade: “a vida escrevia/ poemas pra gente// pra que poesia?”.

Partindo destes regressos em poemas recentes, a antologia fecha com a memória editorial, em que Nicolas recolhe poemas sobre Brasília, o grande tema de sua obra, em Menino candango. O que estes poemas têm a ver com a infância? Para o poeta, Brasília é a cidade-infante, em sua linguagem arquitetônica modernista, com o que tem de beleza e perversidade. É também o momento do menino embirrado que não quer crescer, e que escreve como se nunca tivesse saído da infância.

sou
de brasília
mas juro
que sou inocente

Esta inocência não é só pela identificação do poeta com a gente pobre, que construiu a capital e mora hoje nas cidades satélites, numa negação do poder — é também a inocência de quem continua em estado permanente de ingenuidade lírica e disponibilidade de ser.

Com estudos de sua trajetória e com comoventes fotos juvenis, ao lado dos pais e dos irmãos, num festival de cabelos brilhantemente loiros, O menino do mato que engoliu Brasília é um dos grandes livros brasileiros sobre a infância, esta obsessão da cultura brasileira, e mostra Nicolas Behr como o poeta de um tempo e uma linguagem eternamente paralisados, que nos definem como nação.

O menino do mato que engoliu Brasília
Nicolas Behr
Entrelinhas
288 págs.
Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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