Revolução literária

Flaubert é mestre do detalhe, da finura, da delicadeza, de uma absoluta harmonia nas cenas e nos cenários, mas um fracasso absoluto na questão social
Gustave Flaubert, autor de “A educação sentimental”
02/06/2021

A educação sentimental, de Gustave Flaubert, é, seguramente, o romance que mais influenciou a literatura de ficção do Ocidente, integrando a lista dos 100 melhores livros do século 19. O fracasso talvez venha da absurda visão social do romancista, sempre ao lado da burguesia. Foi e é um fracasso, sobretudo, para o seu autor, acostumado ao sucesso e à fama. Flaubert tornou-se antipático e rejeitado justamente por esta posição social.

Em carta ao escritor russo Ivan Turguêniev, diz textualmente que “o grande sucesso me abandonou, o que resta é o fracasso de A educação sentimental”. Ele recebeu muitas críticas negativas e muitos ataques. Mas era um fracasso que contou com elogios de Zola, Victor Hugo, Théodore de Banville, além de Proust. O escritor foi acusado de criticar a magistratura, “de criar personagens tão vulgares quanto aqueles da sociedade em que viviam”. Apelar para baixezas como a descrição de um bordel ou de um baile à fantasia, de acordo com nota de abertura do livro assinada pela tradutora Rosa Freire d’Aguiar, na edição da Penguin-Companhia.

Quero destacar que rejeito, inteiramente, e repudio com toda força do meu sangue, a posição político-social de Flaubert. Mesmo assim, ele criou em Um coração simples a figura mais humilde e mais explorada da literatura universal: a empregada doméstica. Talvez o primeiro grande texto sobre a escravidão das domésticas.

A educação sentimental conta a história de Frédéric, um jovem que se envolve numa grande paixão amorosa com olhos na política e na Revolução Francesa de 1848, que, aliás, oferece algumas das melhores cenas do livro.

Na primeira página, o personagem começa a ser apresentado num impreciso artigo indefinido, e só depois revelado. Assim: “Um rapaz de dezoito anos, de cabelos compridos e levando um álbum debaixo do braço, mantinha-se perto do leme, imóvel… Contemplava através do nevoeiro, os edifícios cujos nomes não sabia; depois abarcou, num último olhar, a ilha de Saint- Louis, a Cité, a Notre-Dame; e logo, Paris desaparecendo, soltou um grande suspiro…”

Mesmo sendo tão importante, não é o livro mais lido do escritor francês, honraria reservada a Madame Bovary, romance que traz como protagonista Emma, mulher descontrolada amorosamente que, embora casada com um médico, Charles Bovary, optou por dois amantes — León e Rodolphe — em busca de fortuna, o que afinal não se concretizou. O romance mereceu e merece muitos estudos acadêmicos em todo mundo.

Frédéric
A educação sentimental começa com Frédéric partindo de navio do porto de Sena, naquele que é o início de sua aventura político-amorosa-revolucionária e que resultará neste grande romance flaubertiano, no qual o personagem conhece a mulher de sua vida, em torno da qual girará parte significativa do enredo: Madame Arnoux, uma senhora mais velha por quem se apaixonou, que também é esposa de seu amigo e benfeitor Jacques Arnoux.

Nas primeiras páginas avultam as figuras humanas, destacando assim o humano, que é a preocupação de Flaubert, a partir de aspectos físicos, caso de Jacques Arnoux, já referido:

Viu um senhor fazendo galanteios a uma camponesa, enquanto mexia no crucifixo de ouro que ela levava no peito. Era um grandalhão de uns quarenta anos e cabelos crespos. Sua compleição robusta enchia uma jaqueta de veludo preto, duas esmeraldas brilhavam na camisa de cambraia, e as calças largas e brancas caíam sobre estranhas botas vermelhas de couro da Rússia, realçadas por desenhos azuis.

Os movimentos internos da cena levam à compreensão do humano em Flaubert:

1. Através do olhar vê “um senhor” que faz “galanteios a uma camponesa”, e não apenas faz galanteios, mas mexe no crucifixo que ela levava no peito.
2. O que era distanciamento físico no olhar vira intimidade ao mexer no crucifixo.
3. Mesmo assim, o narrador libera a camponesa — afinal, uma mulher pobre e sujeita a agressões machistas — para retornar ao personagem masculino e rico.

Flaubert, por meio do narrador, revela uma antipática posição social. Movimento que se explicará na trajetória do romance.

A presença de Frédéric não o constrangeu. O sujeito se virou várias vezes para ele, interpelando-o com piscadelas; em seguida, ofereceu charutos a todos os que o cercavam. Mas, talvez entediado com essa companhia, foi se instalar mais longe. Frédéric o seguiu.

Aqui os movimentos parecem contraditórios, mas enriquecem muito o romance. Observem: Frédéric observa o senhor com obstinação, a ponto de descrevê-lo minuciosamente, mas não demonstra qualquer incômodo ao ver que ele mexe no crucifixo junto ao peito da camponesa, a quem, aliás, não dará mais nenhuma atenção. Pelo contrário, aproxima-se do grandalhão que lhe concede piscadelas e distribui charutos aos companheiros de viagem.

É nesta viagem que ele tem a primeira e maravilhosa visão da mulher, transcrita aqui na brilhante tradução de Rosa Freire d’Aguiar.

Foi como uma aparição:

Ela estava sentada, no meio do banco, sozinha; ou pelo menos, ele não via ninguém, no deslumbramento que os olhos dela lhe enviaram. No exato instante em que ele passava, ela levantou a cabeça; ele curvou involuntariamente os ombros; e quando foi se postar mais longe, do mesmo lado, ele olhou para ela.

Usava um largo chapéu de palha, com fitas cor-de- rosa que balançavam ao vento, atrás dela. Seus bandos pretos, contornando a ponta das grandes sobrancelhas, desciam bem abaixo, e pareciam comprimir amorosamente o oval do rosto. O vestido de musselina clara, salpicado de pequenos poás, se desdobrava em muitos pregueados. Ela estava bordando alguma coisa; e o seu nariz reto, seu queixo, toda a sua pessoa se recortava contra o fundo azul do ar.

Como ela mantinha a mesma pose, ele deu várias voltas, para a direita e para a esquerda, a fim de disfarçar a sua manobra; depois, plantou-se bem perto de sua sobrinha, encostada no banco, e fingiu observar uma chalupa no rio.

Nunca tinha visto aquele esplendor de sua pele morena, a sedução de sua cintura, nem aquela delicadeza dos dedos que a luz atravessava. Observava com espanto seu cesto de costura, como uma coisa extraordinária. Quais seriam seu nome, sua residência, sua vida, seu passado. Desejava conhecer os móveis do seu quarto, todos os vestidos que ela usava, as pessoas que frequentava; e o próprio desejo da posse física desaparecia sob um desejo mais profundo, numa curiosidade dolorosa que não tinha limites.

É preciso destacar a minúcia e a delicadeza estilística de Flaubert tornado narrador através dos olhos do personagem, isto é, dos olhos de Frédéric — uma técnica, aliás, sofisticadíssima, embora no Brasil seja lugar-comum desdenhar da técnica.

Com relação aos arroubos revolucionários narrados em A educação sentimental, escreve Flaubert na terceira parte da obra:

O barulho de uma fuzilaria o tirou abruptamente do sono; e apesar da insistência de Rosanette, Frédéric quis, à força, ver o que estava acontecendo. Descia em direção aos Champs-Élysées, de onde os tiros tinham partido. Na esquina da Rua Saint-Honoré, operários cruzaram com ele, gritando:

— Não! Por aí, não! Vamos para Palais-Royal!

Frédéric os seguiu. Tinham arrancado as grades da Assomption. Mais longe, ele observou três paralelepípedos no meio da rua, o começo de uma barrada, provavelmente, e depois, cacos de garrafa e pacotes de rolos de arame para atrapalhar a cavalaria; foi quando, de repente, surgiu de uma ruela um jovem pálido, alto, cujos cabelos pretos pairavam sobre os ombros enrolados numa espécie de camiseta de soldado, e corria na ponta das chinelas, com ar de sonâmbulo e rápido como um tigre. De vez em quando ouvia-se uma detonação.

Na noite da véspera, o espetáculo da carroça, com cinco cadáveres recolhidos entre os do Boulevard des Capucines, mudara as disposições do povo; e enquanto nas Tuicines sucediam-se, os ajudantes de ordens e o senhor Molé, formando um novo gabinete, não aparecia, e o Sr. Thiers tentava formar outro, e o Rei fazia suas chicanas, hesitante, e depois entregava a Bugeaud o comando geral para impedi-lo de usá-lo, a insurreição, como dirigida por um só braço, organizava-se formidavelmente.

Homens de uma eloquência frenética arengavam a multidão na esquina das ruas; outros, nas igrejas, tocavam o sino a rebate com toda a força; derretia-se chumbo, enrolavam-se cartuchos; as árvores dos bulevares, os mictórios públicos, os bares, os portões de grades, os bicos de gás, tudo foi arrancado, derrubado; de manhã, Paris estava coberto de barradas.

 

Observe-se aqui o mesmo olhar minucioso do olhar do personagem que descreve em detalhes e com delicadeza Madame Arnoux, por quem Frédéric se apaixona profundamente. Pode-se dizer, portanto, que Flaubert é o mestre do detalhe, da finura, da delicadeza. De uma absoluta harmonia nas cenas e nos cenários. Na organização dos episódios. Mas um fracasso absoluto na questão social.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho