O erro narrativo de Tolstói

Para escrever é preciso verificar os efeitos internos da ficção de forma a seduzir o leitor
31/12/2016

Somente um estudioso do porte e do nível de Percy Lubbock pode apontar um erro fatal de Tolstói na construção de Anna Karenina, uma das obras-primas da ficção universal e um dos monumentos a erguer o sólido monumento que sustenta a literatura. Este é um erro do livro — adianta Lubbock, depois de refletir sobre a questão, analisando-a ponto a ponto, momento a momento, a que nos reportaremos logo a seguir — notado com frequência, e um erro que Tolstói dificilmente poderia ter evitado, se estivesse decidido a não renunciar a seu plano cênico. É claro que podemos discordar do analista, mas é que chamo a atenção para o detalhe porque faz parte do estudo de montagem de um romance de forma a alcançar alguma harmonia, mesmo dentro da desarmonia e da divergência do mundo contemporâneo.

Mas é preciso destacar agora as palavras do crítico de forma a tornar claro o raciocínio dele, em A técnica da ficção — livro indispensável para quem quer estudar a questão da montagem na obra de ficção. “Anna surge desde logo no início do livro; o ponto de partida de todo o romance é criado por uma crise particular de sua vida. Ela conhece Vronski e se apaixona por ele — eis a crise de que deriva o resto de sua história. É o começo da ação, o tema dos primeiros capítulos. E nisso está a dificuldade. Anna precisa ser representada num determinado plano crítico de emoção antes que soe o momento, pelo método de Tolstói, de criar o efeito correto para ela e tornar seu impulso realmente inteligível. Para o leitor, é determinado abrupto o passo em que ela abandona o passado e se atira à sua trágica aventura. É impossível mostrar-lhe a paixão e a resolução porque ela mesma ainda não foi completamente apresentada. Participou, ficou acabada e graciosa, de umas poucas cenas encantadoras, mas isso não basta. Para que fosse vista tão cedo nesse grau de exaltação, era essencial que sua vida tivesse sido plenamente partilhada pelo expectador, mas como Tolstói contou a história, Anna está no meio de sua crise e passou por ela antes de podermos conhecer-lhe a vida claramente por dentro. Anna é viva e bela desde que aparece pela primeira vez. A arte de Tolstói é segura demais para perder o efeito certo. E se a história não a envolvesse em nenhuma grande aventura no princípio — se ela pudesse passar, como Levin, de uma cena a outra, revelando-se tranquilamente — o método de Tolstói teria sido perfeito. Mas o caso é que não há uma preparação adequada. Anna é levada a agir como uma mulher profundamente comovida e agitada antes de ter o valor necessário a tais emoções. Ainda não se tornou uma presença suficientemente familiar, e não há meios de calcular a força da tempestade que vemos sacudi-la.”

Lubbock analisa segundo a estética aristotélica que se tornou quase um dogma para a composição da Beleza. Só lembrando que, neste caso, a Beleza precisa ter Harmonia, Proporção e Grandeza, vindo daí a sequência de Apresentação, Justificação e Ação, que dá forma ao mundo organizado. É, por assim dizer, uma sequência lógica, que resulta numa montagem linear. Não creio que hoje tenha que ser assim, apesar do meu imenso respeito por Lubbock. Pode-se conduzir a personagem por um gesto, uma frase, uma palavra — sem a necessidade de uma cena inteira ou de uma sequencia de cenas, até porque a interpretação do tempo hoje é bem diferente.

Mas, em se tratando de uma análise de Lubbock, amigo de Forster, Graham Greene e Virginia Wolff, é preciso ter cautela e respeito. O que fica aqui de mais importante, todavia, é a lição de montagem, algo decisivo na composição de um romance, novela ou conto, porque é através dela que o autor seduz o leitor. Além do mais, há os elementos metafóricos que podem representar sequências de cenas ou de temperamento através dos cenários ou do olhar do personagem.

Aliás, vem de Lubbock a teoria dos olhares na composição das cenas e dos cenários. Falando a respeito desta técnica ricamente usada por Flaubert em Madame Bovary, escreve: “Ele a torna subjetiva, situa-nos de modo que possamos ver através dos olhos dela — de fato; fá-lo, todavia com um ar de alheamento, que impede que nos identifiquemos inteiramente com ela. Era assim que pensava e sentia; olhem que compreenderão; tal é a alma dessa mulher, parece dizer com um toque sempre perceptível de ironia, que não nos deixa perder-nos na consciência dela, que não nos deixa mergulhar nela tão profundamente que não possamos voltar à tona com facilidade. A vida da mulher é um mundo real, perfeitamente sentida; mas o leitor é levado a aceitar a sua participação nela com uma experiência agradável, a coisa que atrai uma curiosidade exigente — sem jamais supor que possa haver algo mais do que isso”.

Enfim, a lição de Lubbock é notável, mesmo considerando-se a questão da mudança estética. Devemos, antes de tudo, verificar a necessidade do estudo sistemático. E neste livro temos a possibilidade de uma leitura técnica, rigorosamente técnica para compreender a arte de escrever um romance e, se não, de escrever. Pelo menos de ler.

Para escrever é preciso verificar os efeitos internos da ficção de forma a seduzir o leitor, como tenho chamado a atenção inúmeras vezes. Afinal, a obra de arte se reconhece por toda a emoção estética que pode provocar no leitor, sem que isso implique num enredo complexo. Ou cinematográfico.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho