Espaços fechados em cenas abertas e críticas

Em “Terras do sem-fim”, Jorge Amado faz da linguagem um meio para denunciar as agressões sociais, traço marcante em toda sua vasta obra
Jorge Amado, autor de “Jubiabá” e “Terras do sem-fim”
02/01/2021

Espaço e tempo são questões graves e profundas na estratégia da ficção — romance, novela, conto. Nesta coluna discutimos os espaços na Estética Popular ou Política Brasileira estabelecida na obra de Jorge Amado, que trava constantemente uma Luta Verbal por denunciar as agressões sociais, reunindo elementos das normas culta e popular da nossa sociedade, sobretudo no plano da linguagem.

Desta forma, enquanto a narrativa transcorre em plano aberto, o narrador — ou os narradores — fecha o ângulo de visão dando força e ênfase ao texto. Na abertura de Terras do sem-fim, por exemplo, enquanto é narrada a partida de um navio em cena ampla ou aberta com seus personagens, fecha-se o espaço sob um passageiro — o capitão João Magalhães — através do seu olhar. Aí a narrativa ocupa todo o primeiro parágrafo com o espaço reduzido:

O apito do navio era como um lamento e cortou o crepúsculo que cobria a cidade. O capitão João Magalhães encostou-se na amurada e viu o casario de construção antiga, as torres das igrejas, os telhados negros, ruas, calçadas de enormes pedras.

A abertura do romance apresenta o espaço-navio para o desenvolvimento da história em espaço fechado, embora defina pelos olhos do personagem como elemento de aprofundamento da construção social. Isso vai se desenvolvendo nos primeiros parágrafos do texto, mesmo quando parece desvio do núcleo central para mera ilustração do capitão João Magalhães, mas não é bem assim. O olhar aí faz críticas severas à escravidão negra no Brasil, ao tempo em que destaca e elogia o trabalho do negro, que empenha o seu suor na construção social. Não é um olhar qualquer, mas um olhar crítico, mesmo o personagem não sendo o seu emissário mais recomendável.

Veja-se aqui este exemplo:

Sem saber por quê, achou aquelas pedras, com que mãos escravas haviam calçado as ruas, de uma beleza comovente. E achou belos também os telhados negros e os sinos das igrejas que começaram a tocar chamando a cidade religiosa para a bênção.

Aí há, pelo menos, uma crítica à cidade religiosa que foi construída com o sangue dos escravos….

Em seguida, a mesma advertência, em outras palavras: “Novamente o navio apitou rasgando o crepúsculo que envolvia a cidade da Bahia. O apito do navio celebra, junto ao crepúsculo, um lamento à escravidão…”

Tudo isso num autor que jogou o prestígio de sua obra num duelo político.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho