Quase-diário (2)

Encontro com a família de Graciliano Ramos, conversa com Jorge Amado e um certo Sant’Anna “filho-da-puta”
01/04/2009

05.06.82
Volto da Bienal Nestlé de Literatura (…) Bela oportunidade para conhecer a família de Graciliano Ramos. A mulher Heloisa e o filho Ricardo estavam no jantar que Julieta Godoy Ladeira ofereceu a alguns escritores. A viúva de Graciliano, que simpatia! que bela mulher!, ache-a bonita aí nos seus 70 e tantos anos, elegante e com os cabelos embranquecidos. Contou-me, prazerosamente, histórias várias sobre Graciliano. Histórias que, infelizmente, já vou esquecendo.

Contou-me, por exemplo, que Graciliano escrevia Vidas secas à noite, mas de manhã fazia-a ler naquele quarto de pensão em que viviam após a prisão. E que a pensão vivia cheia de escritores. Que num dos quartos ao lado havia um grupo integralista que os ameaçava sempre com uma “noite de São Bartolomeu”. Por isso, Graciliano sempre dormia com um revólver que o José Américo de Almeida lhe deu para se defender; mas ele, como bom nordestino, se fiava mesmo era na sua navalha.

Almocei muitas vezes com Rubem Braga, que tendo sido companheiro de pensão de Graciliano, contou-me várias coisas. Por exemplo, que ele vendia os capítulos de Vidas secas para La Nación.

06.09.82
Ontem o Canal Livre passou a entrevista que fizemos com Jorge Semprún (Leandro Konder, Antônio Callado, Flávio Rangel, Gabeira, Helena Gasparian e Roberto Dávila). Foi ótima. Como resultado, hoje o Roberto D’Ávila me diz que o Jorge Amado quer que eu participe da entrevista dele dentro de uma semana.

Insisti com o Semprún — como aliás no debate após a conferência da manhã na PUCRJ — na necessidade de se ir além da semântica velha de “esquerda” e “direita”. Mas ele apesar de boa-praça não consegue teorizar fora desses termos. Nisso o Gabeira está na frente, procura um espaço novo.

27.09.82
Ontem, a TV Bandeirantes apresentou o Canal Livre no qual Zélia, Tarso de Castro, João Ubaldo, M. Helena Carneiro da Cunha, Antonio Houaiss, Roberto D’Ávila e eu, entrevistamos Jorge Amado.

Duas observações curiosas sobre seus livros:

1) Confessou que havia pensado em fazer de Pedro Archanjo em Tenda dos milagres uma espécie de Marighella, líder comunista que ele tanto estimava. Mas, mesmo tendo diluído na biografia do personagem fatos biográficos de Marighella (como aquela prova em versos), Pedro Archanjo, ao invés de revolucionário, casa-se com uma filha da burguesia, e branca. Diz, deste modo, que o controle que tem sobre seus personagens é relativo.

2) Contou também que o fim de Dona Flor seria outro: depois de dormir com Vadinho (que volta da morte), ela iria com ele para o outro mundo, numa saída mítica e mágica. Mas para sua surpresa, após Vadinho, ela vai para a cama com o marido Teodoro, gosta e acaba ficando com os dois.

10.04.1987
Carlos, meu irmão, que foi presidente da Petrobrás, me conta uma estória curiosa sobre o ex-presidente Figueiredo e a imagem que tem de mim.

Noronha — oficial da Marinha, aposentado, amigo de Carlos —encontra-se sempre com Figueiredo fazendo cooper na praia. Puxa conversa sobre política, sobre o Carlos e sobre mim. De propósito.

— O que acha do Sant’Anna? — indaga Noronha.

— É bom. É quem mais entende de petróleo no país.

— E do Affonso, irmão dele?

— É um comunista, filho-da-puta.

— Por quê, presidente?

— Falou mal do Exército (imagino ser por causa do poema “Sobre a atual vergonha de ser brasileiro”, que foi uma resposta à resposta que a Presidência deu a um artigo meu “A preguiça do presidente”. No poema indago se “somos um conto de fadas ou um conto de fardas”).

— Mas é gente boa, eu o conheço, insiste Noronha.

— Pode ser. Mas não gosto.

— Olha, presidente, posso até apresentá-lo. Podemos almoçar juntos, com o Sant’Anna.

— Pode ser, um dia, pode ser. O Sant’Anna é legal, mas esse irmão dele, você sabe, eu também tenho o Guilherme, sei como é isso. (Referência a Guilherme Figueiredo que sempre se sentiu livre para criticá-lo e com o qual era meio brigado)

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

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