O homem do caminho

A “religiosidade subversiva” na obra teatral de Plínio Marcos
Ilustração: Igor Oliver
01/08/2020

Há pouco mais de um mês, tive a alegria de assistir pela TV Sesc a uma live do ator Sergio Mamberti interpretando O homem do caminho, um monólogo ainda pouco conhecido de Plínio Marcos. O texto original foi concebido em 1996, mas a sua última versão só foi finalizada em 1999, ou seja, no próprio ano da morte de Plínio, de modo que tem razão Mamberti quando o chamou, na live, de legado final de Plínio.

Acrescentaria que O homem do caminho faz parte de um conjunto de peças que pode ser englobado pela noção pliniana de “religiosidade subversiva”. A ideia implica tanto no afastamento de religiões concebidas e praticadas de maneira apenas burocrática, como no repúdio de políticas oficiais autoritárias e repressivas, que criminalizam atividades e pessoas que não renunciam à liberdade própria e à solidariedade coletiva. A “religiosidade”, aqui, portanto, representa uma oposição frontal à subserviência política e espiritual existente no âmbito de uma vida burguesa estreita e vigiada.

Na concepção do monólogo, Plínio parece ter levado em conta as memórias do tempo em que era o palhaço do circo cigano de Ricardino e Cora, com o qual ele viajou pelo interior do Brasil. Ajustada a essa experiência, a enunciação do monólogo foi entregue a um cigano, Iur, membro da trupe do circo que percorre um vasto roteiro de cidades. Nada é mais determinante do seu caráter do que o nomadismo, a ponto de se definir “homem” pela ideia de “caminho”, e sua origem pela do “vento”. Iur é um “estradeiro” a fazer a “trilha dos saltimbancos”, artistas viajantes que ganham a vida apresentando-se ao longo das cidades, abertos às experiências dos deslocamentos.

A relação desses artistas com as cidades visitadas é conflituosa, pois os seus moradores são determinados pela imobilidade, pela “propriedade”, pelas “fronteiras” e “cercas” — essas “malditas coisas”. Daí Iur chamá-los de “fixos”, associando-os a uma vida mesquinha, submetida ao Poder (político, econômico, policial, eclesiástico ou judiciário), cuja autoridade, entretanto, não é legítima, pois ignora os direitos fundamentais dos homens. Já os saltimbancos, ao contrário dos “fixos”, não admitem fronteiras para as suas andanças, assim como não temem encarar o “mistério” e o desconhecido. E o que os habilita para o contra-ataque ao Poder é o concurso de três artes dominadas por eles.

A primeira arte do saltimbanco é a de “contador de histórias”, cujo modelo original atribui a Jesus, um narrador imprevisto, enérgico e anárquico, em cujos relatos o primeiro direito é sempre o da vida, sagrada em si mesma. Quando este direito é ameaçado, o modelo cigano de Plínio mostra que todos os discursos relativos a produção, propriedade, Igreja e autoridade são apenas ideologia, falsa consciência, filistinismo a falar em nome do Estado e da Religião. Por isso, o homem-fixo é também um “homem-prego”, em lembrança dos pregos com que Cristo foi crucificado. A ação do “prego” atende apenas à defesa da acumulação. As “falações estúpidas” sobre Deus, Pátria, Família, Trabalho, Educação, Progresso etc. etc. traem apenas o vazio prolixo que está bem no cerne da finalidade de acumulação de riqueza.

A segunda habilidade do artista saltimbanco é a de ser mestre das artes das ilusões, praticadas não com violência, mas sim com a rapidez das mãos e a acuidade penetrante da visão. Tal arte da prestidigitação está a serviço de prover o estritamente necessário à vida, em oposição ao desejo de acumulação supérflua. Ela implica numa “arte de olhar”, de “atenção” ao outro, compreendida como empatia humana e faculdade de decifrar os móveis inconscientes do desejo negado pelos “fixos”. A arte do “mágico” também faz parte dessa arte da prestidigitação, pois ela surpreende os habitantes das cidades, entorpecidos por práticas maquinais e sem graça. Alegria e humor são um golpe permanente na tristeza dos fixos (“as caras desses tontos, meu Deus, são muito tristes”).

O terceiro domínio da arte do saltimbanco estende-se ao sexo, ao “trato” de “trepar” na visita às cidades burguesas. O artista faz uso de uma tática de sedução que consiste em não pedir muito inicialmente, a fim de conseguir estabelecer pactos, o que é diferente da ação predatória de um “depravado”. A vitória no domínio sexual não pode residir na humilhação, mas sim no gozo, por meio de “doces palavras” (que atiçam a imaginação) e da “imposição das mãos” (que “tocam pontos” até então ignorados do corpo) e produzem nele um verdadeiro “fogo seco” (à maneira do tantrismo oriental).

O conjunto de operações liberadas pela energia sexual atinge o “fundo das entranhas” e quebra as “comportas” dos amantes, gerando não apenas o riso e o gozo, mas também o sentimento de “fraternidade”, inexistente nas vidas “secas” dos “homens-pregos”. Quer dizer, saltimbanco logra uma liberação física e espiritual, que gera a empatia pelo outro e a alegria do convívio, fora de toda conveniência venal. A diferença mais notável desse tema do monólogo de Plínio em relação às tópicas do “amor livre” dos anos 60 é que o agente da transformação não é a juventude, mas o homem reflexivo e nômade, representado por andarilhos, ciganos, mendigos ou, enfim, pelos artistas, entendidos como aqueles que são capazes de se despojar de tudo, menos do tesão pela vida.

Há nesse anti-herói um híbrido de apóstolo franciscano, cuja devoção em parte se mede pela pobreza, e de sátiro dionisíaco, cuja iniciação espiritual se dá no incêndio dos sentidos. Contudo, a figura que condensa essas três artes do artista subversivo é a do Tarô, que, como se sabe, é um jogo divinatório que se faz por meio de cartas ilustradas por figuras simbólicas. Toda a última parte do monólogo é uma leitura de Tarô dramatizada, tendo como consulente imaginária uma “bela mulher” — talvez uma das mulheres das cidades visitadas; talvez a própria Morte, diante da qual se joga a última prova da verdade do fogo do amante.

As três artes que constituem o poder liberador representado pelos caminhantes — as artes da narrativa, da prestidigitação e do sexo — sintetizam-se no Tarô. Está ali o jogo ilusionista e de rapidez manual com as cartas; está também a narrativa desenvolvida por meio dos símbolos; e, enfim, está ali o refrigério das dúvidas e aflições pela revelação das forças imanentes, físicas e espirituais, a agir sobre o mundo. Em particular, as metáforas sugeridas pelas figuras ilustradas do Tarô são uma tentativa de comunicar o que não pode ser dito nos termos de uma linguagem-clichê.

Para Plínio, a sucessão de símbolos do Tarô imita antigas práticas ritualísticas, nas quais o conhecimento das disposições universais resulta num gesto taumatúrgico, vale dizer, de cura das tribulações da vida humana. A leitura correta do símbolo tem, portanto, muito menos a ver com adivinhação do futuro do que com performance e terapia. Na energética teatral sexualizada do artista saltimbanco de Plínio Marcos, nada pode ser mais imperativo do que a sua intervenção curativa sobre a vida urbana paralisada, estruturalmente destruída e atônita com a catástrofe que preparou para si mesma.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho