1.
Os filmes de terror de nossas infâncias e adolescências, de modo invariável, se passavam num castelo cuja porta principal rangia suas dobradiças e se abria para um salão enorme, iluminado por uma luz suja, cheio de teias de aranhas. Pronto o cenário para ser movimentado por fâmulos com caras de poucos amigos que traziam velas em castiçais que pingavam cera no piso. Os fantasmas vinham um pouco mais tarde, junto com as tempestades, os morcegos e as vozes de além-túmulo. Uma espécie de bricabraque que, no fim das contas, tinha seu efeito nos cabelos em pé. Melhor, mesmo, estar fora do cinema.
2.
A origem disso tudo está numa obra de meados do século 18 inglês, de autoria de Horace Walpole, nobre, filho de um primeiro-ministro que resolveu preencher seu tédio, sua imensa ilustração e seu gosto pela Idade Média escrevendo O castelo de Otranto. Fundava, sem o saber, a chamada “literatura gótica”, e, de lambujem, inspirou o estilo arquitetônico chamado de neogótico, uma coisa horrorosa que dominou o século seguinte; nem é gótico nem contemporâneo, sendo que é exemplo um delírio visual, construído por Ludwig II da Baviera já em pleno século dos trens de ferro e do telégrafo. Esse mau gosto persiste nas patéticas imitações nas janelas pontiagudas das igrejas de escasso orçamento.
3.
Mas voltando a Walpole. Não era mau escritor; fosse mau, não criaria nada de aproveitável nem teria epígonos que aparecem de vez em quando e são bem celebrados, como Stephen King, afora uma filmografia que, por espasmos, provoca bons e premiados diretores. No nosso país, assistimos a um boom de escritores góticos, na maioria pertencentes à primeira idade literária, que, na dificuldade de encontrar editores, se autopublicam e angariam milhares de leitores. Lady Gaga cantou nas areias de Copacabana aquilo que chamou de “Ópera Gótica”. As manifestações do gótico pop ainda são responsáveis por disputados quadrinhos e videogames. Alguns jovens declaram-se góticos no visual e acabam por gerar mais reflexão do que terror. Essa sobrevivência supraliterária e pluriartística do terror tem outras explicações, radicadas no inconsciente, sempre às voltas com as obsessões mais ardentes e que assombram o mundo adulto. As histórias de fadas, via de regra, começam num locus horribilis bem conhecido, para serem abatumados pela glamourização de Disney.
4.
Walpole tinha consciência de seu papel. Homem letrado, sabia que inaugurava um modelo: “…tendo criado uma nova forma de romance…”, como ele diz no segundo prefácio. Isso lembra que no século 20, outro escritor afirmou a mesma coisa: Truman Capote, após o lançamento de A sangue frio, disse que trazia à cena literária um novo gênero, a que chamou de “romance de não-ficção”. Ambos estavam certos, cada qual na medida de suas vaidades.
5.
Sob a óptica do cínico leitor de hoje, O castelo de Otranto terá sua marca algo naïf ou francamente desastrado do ponto de vista da armação da teia dos acontecimentos. Eventos que surgem do nada, personagens que destilam ódio sem se saber a razão, cenas que mudam de espaço sem mais nem menos, tudo isso que conhecemos bem. Sucede, porém, que todos esses aparentes desconcertos constituem a forma mais significativa do (então) novo gênero, e que vemos repetidos em suas versões modernas. Talvez Frankenstein, de Mary Shelley, ou mesmo o Drácula, de Bram Stoker, tenham sido tentativas (bem realizadas) de atribuir um componente psicológico ou psicanalítico às personagens. Claro, essa onda representa certo fastio do Racionalismo e do Iluminismo, e, diga-se, é restrito ao universo cultural anglo-saxônico; nos trópicos ao Sul, os terrores são outros, e por isso nos encantamos, por hábito, com os modelos europeus e norte-americanos.
6.
Como boa obra seminal, não falta o fantasma, ente querido e apavorante. Há quem aponte a precedência do fantasma na figura do pai do jovem Hamlet, e o próprio Walpole afirma isso, mas me parece um equívoco. O fantasma do rei, na obra shakespeariana, tem a função de instigar seu rebento a vingar sua (dele, rei) morte, revelando como foi morto pelo próprio irmão. Na obra de Walpole, o fantasma é um ser que se distingue por suas ações pouco metafísicas:
“Nem céu nem inferno hão de impedir os meus desígnios”, disse Manfredo, avançando novamente para agarrar a princesa. Naquele instante o retrato do avô de Manfredo, pendurado sobre o banco no qual há pouco os dois haviam se sentado, deu um profundo suspiro e moveu o peito.
Depois:
Manfredo, indeciso entre a fuga de Isabela, que agora já alcançara os degraus da escada, e sua incapacidade de desviar os olhos do retrato, que começava a se mover, tinha, no entanto, dado alguns passos em direção à jovem, ainda com os olhos voltados para o retrato, quando o viu sair da moldura e descer até o chão com ar grave e melancólico.
Escolhi apenas esse trecho para dar uma ideia de que tipo de terror que trata Walpole; cenas como essa preenchem toda a novela. As ações vêm emolduradas por espaços tétricos:
A parte subterrânea do castelo era escavada numa série de vários claustros interligados e não era fácil para alguém em tal estado de ansiedade encontrar a porta que se abria para a caverna. Um silêncio assustador reinava nessas regiões subterrâneas, exceto quando, vez por outra, algumas rajadas de vento sacudiam as portas pelas quais ela havia passado, e os gongos de ferro ecoavam através daquele longo labirinto de trevas.
7.
Tudo isso seria reconhecível por qualquer espectador/leitor de hoje e, no entanto, O castelo de Otranto terá mesmo impacto de novidade que teve nos leitores originários se adotarmos a atitude do ouvinte de uma valsa dos Strauss: para degustá-la, é preciso imaginar que a escutamos pela primeira vez. Tenho certeza de que estamos perante um clássico, e sempre nos aproximamos de um clássico com reverência e medo, sem sequer imaginar que esse mesmíssimo clássico talvez tenha sido escrito com bonomia e divertimento, como foi o caso de Orlando, de Virginia Wolff, outra obra que dialoga com Walpole. Como texto canônico das paragens do terror, então O castelo do Otranto merece ir para nossa mochila com honras — e um pequeno arrepio na coluna.