1.
As diferentes traduções brasileiras do título Little women (1868) levam os possíveis leitores a uma ideia equivocada. “Mulherzinhas” é um diminutivo que não soa bem em nossa atual cultura; as irmãs March, imbuídas do desejo de ultrapassar seu tempo e criar perspectivas de vida autônoma no contexto conservador da Nova Inglaterra dos meados do século 19, seriam tudo, menos submissas. A intenção de Louisa May Alcott, penso eu, estaria associada a um conceito bem mais referencial, pois o pai chamava as filhas por esse designativo carinhoso e suavemente irônico. A comemorar, aqui, o título As filhas do Dr. March, dado por Herberto Sales em sua tradução.
2.
O contexto da novela é rigorosamente contemporâneo aos incidentes gerados pela Guerra da Secessão. Em outras palavras, e sem medo da redundância: o enredo repercute os fatos da Guerra, enquanto esta acontecia. Se a Guerra real se desempenhava no ambiente masculino dos campos de batalha, o ambiente de Mulherzinhas, contudo, é intramuros. As quatro irmãs March, solteiras, vivem com a mãe, e naquele microcosmo familiar, cada qual assume seu modo de encarar a vida, como pede uma história tradicional do século 19: Os irmãos Karamazóv, Esaú e Jacó, por exemplo. Ainda no século 20 o tema persiste, com Milton Hatoum, em Dois irmãos, e com Helder Macedo, em Pedro e Paula, mas os irmãos não chegam a ser conflitantes clássicos, porque há maior sutileza nas relações. Se no século 19 há a tendência à metonímia (cada irmão representando um pensamento filosófico, político ou sociológico), no século anterior ao nosso as tensões estão representadas pelas identidades profundas e individualizadas; digamos: trata-se de uma visão “moderna” das relações humanas.
3.
Pensemos nas circunstâncias da escrita desse livro. Louisa May Alcott e suas personagens vivem na Nova Inglaterra, região detentora de uma identidade coletiva que implica dinheiro, refinamento, cultura e bons modos. (Hoje, o dinheiro significa ostentação e vulgaridade). Mas a riqueza não era o caso de sua família, e a folga financeira só veio depois da publicação dessa obra que a celebrizou de modo instantâneo. Mas se os Alcott viviam com aperto, possuíam os restantes apanágios da classe a que se julgavam no direito de pertencer. Então, sobrava cultura, o que fez de Louise uma grande leitora e, na sequência, uma notabilíssima escritora.
4.
Pensando nas quatro irmãs do circuito da trama: uma, a mais velha, a “séria”, procura uma paridade entre seus anseios legítimos e os deveres que deve cumprir; a seguinte, dotada de intensa personalidade, deseja ser escritora de sucesso e afirmar seu gênero numa época em que não se falava nisso; outra, mais introvertida, é a docilidade em pessoa, mas docilidade operosa e consciente; a última preza o valor do conhecimento para a afirmação feminina. O interessante, nessa escolha autoral, é que cada qual das irmãs quer alguma coisa; faz projeções, estabelece metas e lutará por elas, e luta era o domínio de Louise May Alcott: desde cedo foi abolicionista da escravidão e ativista pelo voto feminino. O casamento não lhe fez falta, numa sociedade que impunha esse destino às mulheres; quando criança e adolescente, seus jogos eram os dos meninos e rapazes. Impossível que esse ethos afirmativo não viesse para sua obra.
5.
Seria fácil falar em feminismo; mas esse é um conceito moderno, que implica uma atitude de combate público, surgido no âmbito das lutas democráticas do século 20. O que temos, neste texto seminal, são afirmações individuais dentro das propostas da novela, isto é, sem preocupar-se com pregação explícita. Não devemos esquecer, entretanto, que quase todos os grandes movimentos têm origem na palavra, e, nesse complexo, e, por excelência, surge a literatura. Ninguém ignora como O apanhador no campo de centeio definiu o desejo de renovação dos jovens (e não só) do século 20, nem como o Werther teve a ver com o surgimento do Romantismo e tudo que ele trouxe consigo.
6.
Quando falo que as ações das personagens afirmam-se dentro do que a novela se propõe, digo que tudo, em Mulherzinhas, faz sentido, e esse sentido encontra-se nas tramas cruzadas e complementares que constituem o arcabouço novelesco, e este é definido pelas ações e palavras de suas personagens centrais. Há um momento em que Amy diz:
Você ri de mim quando digo que quero ser uma dama, mas quero dizer uma verdadeira dama de mente e maneiras, e tento fazer isso até onde sei. Não consigo explicar exatamente, mas quero estar acima das pequenas maldades, loucuras e falhas que estragam tantas mulheres.
Os propósitos, aqui, assumem um papel decisivo, bem como o alerta realista de algumas podem esmorecer: “Se todas estivermos vivas daqui a dez anos, vamos nos encontrar e ver quem de nós terá realizado seus desejos ou o quanto próximas estaremos dele”, disse Jo, sempre pronta para um plano.
7.
E assim se define o leitmotiv da novela: desejo e determinação expressos na voz feminina. Desejo como forma de afirmar sua individualidade — o que, por si só, é ir contra a corrente — e a determinação em realizá-lo. Sim, isso está em Jane Eyre, publicado vinte anos antes; está em Orgulho e preconceito, ainda mais antigo, mas o que diferencia a novela de Louisa May Alcott é a qualidade desses desejos e os entraves dessas realizações; e principalmente, por multiplicar diferentes perspectivas, instituindo uma polifonia de narrações. Se as obras de Charlote Brontë e Jane Austen falam-nos de um desejo individual, aristocráticas heroínas determinadas a lutar por ele, Mulherzinhas inova por trazer à cena desejos múltiplos vividos pelas quatro irmãs da baixa burguesia, cada qual em sua particularização, representando, assim, toda uma situação geracional. O público letrado norte-americano que lia com sofreguidão as obras monumentais britânicas referidas, por certo que se deslumbrou com a novidade dessas “mulherzinhas” burguesas, pessoas “normais”, e isso tudo gerou a ampla recepção desse livro que, aliás, foi o primeiro de uma série de quatro. Como sempre acontece, o primeiro obnubilou os restantes.
8.
Se hoje há quem se amole um pouco com certa carolice e o latente moralismo, essas são perspectivas extraliterárias, e não custa repetir, pela milésima vez, que qualquer obra só pode ser julgada dentro do contexto que a gerou — caso contrário, seria impossível a crítica e, mesmo a fruição. No caso de Mulherzinhas, a fruição está garantida, o que se comprova pelas centenas de edições em várias línguas; números não são critérios avaliativos, mas estes, somados à massiva presença cultural da obra, faz com que seja incluída no cânone do século 19 e, claro, em nossa extensível mochila.