Notas iniciais sobre o positivismo pós-moderno

João Cezar de Castro Rocha discute o espaço da literatura a partir do início do século 20.
James Joyce, autor de Ulisses
17/10/2015

0.
(Enquanto isso…)

Em concurso de abrangência nacional, promovido por uma vetusta biblioteca, a menina doce e o teórico amargo manipulam seu resultado, desclassificando a obra do desafeto.

Claro: sem comprometer em nada princípios éticos elevados, que, aliás, permanecem rigorosamente preservados.

1.
1922, ninguém ignora, é considerado o annus mirabilis da literatura ocidental; nas palavras de Ezra Pound, o “Ano Um da Nova Era”. Seu entusiasmo dava conta sobretudo da publicação de Ulysses, de James Joyce, e de The waste land, de T. S. Eliot. Numa nota menos solar, recorde-se que nesse ano morreu Marcel Proust, deixando publicados quatro dos futuros sete volumes de À la recherche du temps perdu.

No entanto, visto retrospectivamente, 1922 transforma-se num involuntário réquiem; como se o “Ano Um da Nova Era” ironicamente se convertesse na primeira instância de afirmação de um panorama cultural definido pela emergência de formas outras de expressão, que, muito rapidamente, deslocaram a literatura do lugar central que ela desfrutou de meados do século 18 às décadas iniciais do século 20.

Isto é, desde o momento histórico em que o texto impresso — finalmente acessível, devido ao desenvolvimento de técnicas de que baratearam o custo do livro — tornou-se objeto do cotidiano até o instante em que novas formas de tecnologia e novos meios de comunicação assumiram o protagonismo na circulação e transmissão de bens simbólicos.

2.
No cenário nacional, o ano de 1956 certamente se destaca como o annus mirabilis tupiniquim.

Entre outros títulos marcantes, Guimarães Rosa publicou Grande sertão: veredas e Corpo de baile; Fernando Sabino, O encontro marcado; João Cabral de Melo Neto, Duas águas; Campos de Carvalho, A lua vem da Ásia.

Ora, a frase de abertura de A lua vem da Ásia serve de epígrafe ao cenário contemporâneo:

Aos dezesseis anos matei meu professor de Lógica. Invocando a legítima defesa — e qual defesa seria mais legítima? — logrei ser absolvido por 5 votos contra 2, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris.

Aumente-se em muito a idade do peculiar cobrador, substitua-se a Lógica pela Literatura, e encontraremos nessa irresistível dicção um inesperado autorretrato de boa parte das discussões atuais.

De igual modo, apareceram dois suplementos literários que marcaram época, e ainda hoje são celebrados como modelos de um tempo definitivamente anacrônico: o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, o Suplemento Literário, de O Estado de S. Paulo.

No primeiro número do SL, Antonio Candido escreveu uma resenha definitiva acerca do Grande sertão: veredas. Expressão literária e atividade crítica davam-se as mãos; jornalismo e universidade ensaiavam um encontro produtivo no projeto do caderno, desenvolvido por Antonio Candido, com base na participação constitutiva de jovens professores da USP como colunistas e colaboradores regulares. Por fim, na página Poesia-Experiência, mantida por Mário Faustino no SDJB, o poeta-crítico lançava pontes entre reflexão de ponta, experimentação poética e imprensa cultural.

Em contraste, a situação contemporânea recorda o cenário de uma terra devastada: depois do lamentável desaparecimento do Sabático, de O Estado de S. Paulo, agora foi a vez de O Globo repetir o equívoco, suprimindo o Prosa.

3.
Em primeiro lugar, não se deve mais confiar na proximidade entre os termos crise e crítica, seguindo o estudo de Reinhart Koselleck, Crítica e crise (1953).

Na análise aguda do historiador, se, no século 18, o espírito crítico das Luzes, moldado pelo ideal de perfectibilidade, transformou a História em processo, então, o ânimo questionador favoreceu um estado permanente de crise. Afinal, se idealmente sempre é possível aperfeiçoar tanto as instituições quanto o próprio homem, logo, a própria capacidade crítica exige a identificação de crises localizadas, vale dizer, configurações históricas que não apenas permitem como exigem modificações radicais. Nesse modelo, um esforço intelectual que não produza crise, não é suficientemente crítico.

Simples assim.

Internalizada tal dinâmica à própria atividade do pensamento, o estado inerente da crítica seria a crise.

A experiência literária desempenhou um papel de grande destaque nessa constelação, pois a institucionalização da crítica principiou no teatro e na literatura. O conflito, como motor da intriga, concedeu visibilidade máxima para a oposição, no plano das ideias, dos temas definidores das Luzes: razão x revelação; luzes x trevas; liberdade x determinismo; progresso x tradição, entre outras dicotomias desestabilizadoras das hierarquias do Antigo Regime.

Os estudos literários, especialmente na segunda metade do século 20, vicejaram à sombra do modelo crítica-crise. Nos anos de 1960 a 1980, a disciplina “teoria da literatura” tornou-se vigorosa graças a uma série de embates epistemológicos, cuja virulência apenas demonstrava a força da própria disciplina.

Habitar a crise era o modus operandi do esforço teórico.

A fim de redirecionar o impasse atual é preciso entender que esse modelo somente foi possível porque o sistema crítica-crise supunha a aderência à imagem de um determinado objeto comum.

Esclareço: um objeto, cuja definição era o que se disputava. Não se tratava de ingênua essencialização, mas, pelo contrário, tratava-se de uma comunidade que se reunia precisamente para divergir sobre esses pontos.

Eis a singularidade da crise contemporânea: o que está em xeque é a própria possibilidade de definir um objeto capaz de configurar uma disciplina.

4.
Numa vetusta biblioteca, enquanto isso…

Em concurso de abrangência nacional, o amargo teórico e a doce menina manipulam seu resultado, desclassificando a obra de desafeto.

Claro: sem comprometer em nada princípios éticos rigorosos, que, aliás, permanecem elevadamente preservados.

5.
Verifica-se o surgimento de uma nova categoria de pesquisadores que, com alguma dose de bom humor, pode ser assim denominada: ex-professores de literatura. Uma frase em aparência anedótica ganha contornos sérios, definindo o impasse atual. Em entrevista à Flávia Costa, Josefina Ludmer afirmava, “não desejar que seu próximo livro (…) estivesse na estante de crítica literária das bibliotecas”.

No cenário contemporâneo dos estudos literários, os dois eixos de articulação de qualquer disciplina não mais desfrutam de estabilidade mínima. Os estudos literários já não dispõem, na conceituação de Wlad Godzich, de “um objeto de pesquisa normativo”, tampouco de “um grupo de indivíduos reconhecidos como seus praticantes e que a si mesmo assim se vê”.

(Um problema teórico de grande interesse.)

6.
1922 também foi o ano de publicação de Os argonautas do Pacífico Ocidental. No prefácio, Bronislaw Malinovski levantou o problema que nos preocupa em relação aos estudos literários. Isto é, justamente quando se desenvolveu e aprimorou o trabalho de campo, lançando mão de instrumentos de registro até então pouco empregados na pesquisa etnológica, sobretudo aparelhos modernos de gravação de voz e de imagens, os habitantes dos grupos estudados “morrem diante de nossos olhos”.

Em seu primeiro seminário no Collège de France, no ano letivo de 1959-1960, Claude Lévi-Strauss retomou o problema; enunciado de forma cristalina:

A etnologia não estará condenada a se tornar, muito em breve, uma ciência sem objeto? Esse objeto foi tradicionalmente fornecido pelas chamadas populações “primitivas”.

Dois problemas surgiram: algumas dessas populações reduziram-se dramaticamente; ao mesmo tempo, as populações que cresceram numericamente, começaram a opor aos etnólogos uma resistência política, recusando-se ao papel de meros “objetos de estudo”.

O antropólogo vislumbrou dois modos de enfrentar a crise provocada pelo desaparecimento potencial do objeto de pesquisa normativo.

De um lado, “prosseguir, certamente durante séculos, explorando a enorme massa dos materiais acumulados”; em alguma medida, o que Lévi-Strauss realizou por meio da escrita dos quatro volumes da série Mythologiques.

De outro lado, as “antigas sociedades indígenas” poderiam “formar seus próprios etnólogos”, que, assim, fariam da sociedade dos etnólogos europeus e norte-americanos seus objetos de estudo; virando o modelo usual de ponta-cabeça.

A segunda opção originou, em alguns contextos, como, por exemplo, no México, uma corrente denominada “antropología de nosotros”, na qual etnólogos locais são formados. Contudo, em lugar de dedicar-se ao estudo de europeus e norte-americanos, consagram-se à análise de seus próprios povos, realizando um duplo movimento de tradução: do cotidiano e da cosmovisão indígena com instrumentos fornecidos pela antropologia; dos conceitos e métodos da disciplina, que são submetidos a uma crítica com base em práticas e formas de pensamento forjadas em outra escala de valores.

Eduardo Viveiros de Castro aprofundou essa possibilidade. As teorias do perspectivismo ameríndio e do multinaturalismo obrigam a antropologia a ampliar seus horizontes teóricos e conceituais pela assimilação de visões do mundo que não se reduzem a um único centro de determinação de sentido.

Uma terceira via foi explicitada pelo trabalho de Gilberto Velho, um pioneiro da antropologia urbana no Brasil. Ele deslocou o olhar antropológico do distante para o próximo, pois o fator decisivo é a capacidade de produzir a relativização do próprio pela consideração renovada do alheio.

Desnaturalizar-se é o efeito produzido pelo ato de dépaysement, sem o qual a antropologia perderia sua razão de ser.

8.
A história recente da antropologia estimula uma reflexão nova sobre os impasses atuais da crítica. Alguns dos motivos pelos quais se advoga a sua crise recordam um involuntariamente divertido “positivismo pós-moderno”.

Vejamos.

É cada vez mais comum ler frases do gênero: “nas atuais condições de fragmentação da experiência, de volatilização de todos os valores, de aceleração da fruição do tempo, de predomínio de meios audiovisuais e digitais, etc., a literatura já não é mais possível e muito menos a crítica”. Não importa a sofisticação dos argumentos desenvolvidos a partir de tais premissas, já que se estabelece uma relação simplista de causa e efeito entre sintomas contemporâneos e consequências consideradas necessárias.

Imaginemos, porém, que os adeptos do positivismo pós-moderno tenham razão e que, por A + B, se demonstre que a literatura e a crítica estejam fora de lugar; na verdade, já não disponham de lugar algum. Como resposta possível, uma pergunta brutal: “E daí?” Nada nos impede de tornar o anacronismo deliberado e as atribuições errôneas as regras de um método a ser inventado.

Em que medida, os diagnósticos correntes da atual crise dos estudos literários escamoteiam o que deveria ser tematizado?

A crise não é exclusivamente da atividade crítica ou da experiência literária, mas das formas tradicionais de legitimação, que costumavam depender de uma autoridade determinada; a legitimação agora passa por esferas múltiplas, resistentes a um centro único de orientação. Não estaremos maliciosamente transferindo a crise que afeta professores universitários e críticos para o objeto de pesquisa normativo?

Hoje, e não apenas no Brasil, o que ocorre é a expansão considerável da atividade crítica e a apropriação vigorosa da experiência literária. E não se trata da emergência de um espaço hegemônico, que permitiria o resgate da legitimação perdida. Experimentam-se territórios possíveis, articuladores de intervenções pontuais: o jornal, o livro, a revista, o blog, o vlog, o Twitter, o Facebook, a Academia, as listas de endereço eletrônico, a televisão, o rádio, a web, os festivais literários, as casas de saber, as livrarias, os clubes de leitura, os cafés, etc. Afirmar que tais expansão e apropriação não são exatamente “crítica”, tampouco “literatura”, engendraria um paradoxo pouco produtivo, pois não é possível abrir mão da especificidade de uma prática discursiva e, ao mesmo tempo, definir hierarquias sobre o que deva ou não ser considerado literatura ou crítica.

Não é tudo: nunca existiu algo próximo tanto a uma prática discursiva unívoca denominada “literatura” quanto a um exercício regrado e uniforme chamado “crítica”. A diversidade de modelos e de procedimentos sempre prevaleceu; apenas decidimos negligenciar essa pluralidade constitutiva.

Por que não pensar em termos de experiências literárias em lugar de terminar no eterno beco sem saída das definições normativas de “literatura”?

No fundo, o que professores e críticos associados à universidade denominam literatura limita-se a um repertório estreito que corresponde às exigências do método desenvolvido na universidade. Método esse que privilegia uma experiência literária que define seus campos de força por meio da metalinguagem e da autorreferencialidade. Os estudos literários se desenvolveram através da naturalização da escolha de seu objeto de pesquisa normativo, que, de forma muito conveniente, reduplicava as teorias e os métodos defendidos por este ou aquele pesquisador.

(Os estudos literários também acham feio o que não é espelho.)

Reitero: a crise contemporânea não se explica apenas pela precariedade do objeto de pesquisa normativo; ela envolve sobretudo o grupo de indivíduos reconhecidos como seus praticantes e que a si mesmo assim se vê.

Hora de encerrar.

Por que não fazê-lo recordando o vaivém intelectual de Leo Sptizer?

Na comparação filológica, está encarnado um constante trazer do distante para perto e um constante levar do perto para longe (…). O filólogo alemão, que analisa a cultura francesa, deve poder se apropriar desse francês quase ao ponto de as fronteiras nacionais desaparecerem. Ao mesmo tempo, o alemão que procura penetrar a cultura alemã deve poder manter uma distância quanto ao objeto estudado, quase como se fosse um estrangeiro (a última meta é muito mais difícil e rara.)

Um duplo quase; como se Mario de Sá-Carneiro associasse experiência literária, atividade crítica e deslocamento antropológico.

9.
Em concurso de abrangência vetusta, promovido pela Biblioteca Nacional, ele e ela manipulam seu resultado, atribuindo notas ínfimas à obra do desafeto — ah! a alma ressentida do mestre-escola nos tristes trópicos; ah! as angústias alencarianas da aluna brilhante de futuro incerto.

Isso sem comprometer em nada princípios éticos permanentes — dela e dele, claro está. Aliás, princípios rigorosamente elevados.

(Enquanto isso.)

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

Rascunho