Museus e a história do futuro: funerais e projetos (final)

O capital político de Josef Stálin evaporou-se com uma rapidez que nem mesmo seus inimigos poderiam ter antecipado
Funeral de Josef Stálin, em 1953.
30/05/2020

Um encontro
Ela olha para o relógio inadequadamente contemporâneo na parede branca e se preocupa: O Museu da Guerra Patriótica de 1812 está prestes a fechar.

Ela se concentra: precisa rever o vídeo do funeral de Josef Stálin e dessa vez não pode perder detalhe algum.

Ela sente que algo lhe escapou na movimentação coreografada dos políticos diante do féretro do grande líder.

Ela intui um encontro que talvez já tenha ocorrido, embora só agora comece a entendê-lo.

Ela então fecha bem os olhos e o vídeo recomeça.

Corpo inquieto
As imagens monótonas sucedem-se. Não há o pranto sentido, público porém contido, um certo sentimento íntimo materializado na multidão que acompanhou o funeral de Lenin. Mãos incrédulas que protegem rostos que não desejam reconhecer a face sempre idêntica da indesejável das gentes. A dor intensa e ainda assim indivisível de perder alguém muito próximo.

Essa diferença entre os dois eventos chamou sua atenção e ela já a domina. Mas o que a inquieta?

(Os guardas do Museu principiam a circular entre as galerias, numa recordação impaciente: você sabe que horas são?)

Ela está de volta ao Kremlin e redobra o cuidado. O filme já vai terminar, pois é a hora do discurso dos altos dirigentes partidários.

Momento tenso, minuciosamente roteirizado, embora protocolar na aparência. Uma pergunta domina a cena: quem herdará o papel de Secretário Geral do Partido Comunista da União Soviética?

Por isso mesmo, e sem surpresa alguma, os membros do Politburo discursam com a gravidade exigida pela ocasião. Corpos sóbrios e olhares distantes. Posições estáticas com vistas à disputa pelo poder que já se instalou entre eles. Estátuas que medem palavras e contam passos. A lição de Trotsky, isto é, a astúcia de Stálin, não foi esquecida: nesse momento decisivo, qualquer erro, tonto ou involuntário, pode custar a sobrevivência na complexa máquina partidária.

(Ela sabe: Stálin manobrou nos bastidores para que Trotsky não estivesse presente no funeral de Lenin.)

Gestos medidos — portanto.

Ela no entanto crê recordar que é nessa hora — um pouco mais, talvez? — que um corpo capturou sua imaginação.

Ela apruma o próprio corpo e espera.

O culto e seu avesso
Uma data para não esquecer: 5 de março de 1953.

O falecimento de Josef Stálin causou comoção em todas as latitudes: em uníssono, admiradores e adversários sabiam que estavam diante da despedida de um grande homem, cujo legado permaneceria por muito tempo indisputado. A importância de sua ação política no desenho do pós-Guerra não era contestada — nem mesmo contestável, pelo menos à época.

As credenciais do líder impressionavam: com mão de ferro e ânimo totalitário, modernizou a economia russa, levando sua industrialização ao patamar de segunda potência mundial; impôs o comunismo no Leste europeu; ampliou a influência soviética, sustentando uma ordem internacional bipolar, definidora da Guerra Fria.

Ela pensa: e nem mencionei a vitória do Exército Vermelho na épica Batalha de Stalingrado, que de julho de 1942 a fevereiro de 1943 manteve o mundo literalmente acompanhando o dia a dia do conflito. Em caso de avanço das tropas alemãs, a Segunda Guerra Mundial teria uma inflexão imprevisível. Às margens do rio Volga, a heroica resistência do povo russo, lutando quarteirão a quarteirão, rua a rua, casa a casa, corpo a corpo, provocou a primeira grande derrota do exército nazista, que até esse momento parecia invencível. E os números são pleonásticos: 2,2 milhões de soldados participaram das escaramuças; aproximadamente 2 milhões de mortos, feridos ou feitos prisioneiros de guerra; centenas de aviões da Luftwaffe e de tanques das divisões Panzer.

O êxito soviético na Batalha de Stalingrado não somente fortaleceu o Exército Vermelho, cuja mística não parou de crescer até sua entrada triunfal em Berlim no dia 2 de maio de 1945, como também obrigou o Exército alemão a deslocar tropas da Frente Ocidental, enfraquecendo o esforço de guerra nazista em todas as frentes.

O capital simbólico propiciado pela Batalha de Stalingrado pareceu, se não apagar, nuançar episódios francamente negativos da trajetória política de Stálin: a perseguição implacável contra os adversários, o assassinato de Leon Trotsky na Cidade do México constituindo o exemplo extremo; a farsa dos Processos de Moscou entre 1936 e 1938, com o expurgo de opositores; a organização de um Estado totalitário, com base na montagem de um ubíquo serviço de repressão e espionagem; a criação de campos de concentração para os dissidentes do regime, os temidos e terríveis gulags, entre outros elementos do regime stalinista.

Ela recorda esses fatos, de forma desordenada, enquanto esmiúça o vídeo.

Eis que a imagem que esperava se oferece num relance.

Ela não dirá a ninguém — e o Museu está mesmo quase vazio —, mas ela se emociona. Ora, entre os disciplinados membros do Politburo, há um, somente um, cujo corpo se rebela, e, aqui e ali, revela um desconforto, até uma inconformidade, que, em tese, seria não apenas inadequada, como também inaceitável.

Ela se surpreende e chega a duvidar do que intui: um alto dirigente do Partido Comunista da União Soviética não controla seu corpo.

Corpo inquieto, gestos involuntários: sintoma de que algo está muito fora da ordem.

Ela finalmente tem certeza: é ele!

O avesso
O capital político de Josef Stálin evaporou-se com uma rapidez que nem mesmo seus inimigos poderiam ter antecipado.

No dia 25 de fevereiro de 1956, no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, o então Secretário Geral, Nikita Khrushchov realizou um histórico discurso-denúncia dos crimes de Stálin, cujo título-síntese tudo dizia, O culto à personalidade e suas consequências. Entre as inúmeras responsabilidades atribuídas a Stálin, o exagero do próprio papel na Segunda Guerra Mundial foi escolhida a dedo: sem o crédito de ter derrotado o Exército alemão, o legado stalinista se tornava vulnerável, demasiadamente frágil.

O abalo foi sísmico — e em todas as latitudes. Poucas vezes foi tão evidente a potência das palavras para moldar a visão das coisas. O Relatório Khrushchov demoliu décadas de construção laboriosa de um mito.

Lutar com as palavras, ensinou o poeta, é a luta mais vã, mas como deixar de enfrentá-las, mal rompe a manhã.

Fio de verdade
Ela recorre sempre a Guimarães Rosa nessas horas e acha fio de verdade nessa parlanda.

Pois.

Ela sorri comovida com o que vê: o corpo rebelde no Kremlin muito em breve traduziu sua inquietação num Relatório.

(Corpo-sintoma: gesto-porvir.)

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

Rascunho