Minimanual do guerrilheiro urbano: leituras e prismas (final)

A ação revolucionária daria a régua e o compasso da Ação Libertadora Nacional
Carlos Marighella, autor de “Minimanual do Guerrilheiro Urbano”
30/07/2019

O circuito entra em colapso
Na última coluna vimos a vertiginosa cronologia da Ação Libertadora Nacional (ALN) no segundo semestre de 1969: em junho, o Minimanual do guerrilheiro urbano começou a circular; em 4 de setembro, o embaixador Charles Burke Elbrick foi sequestrado; no dia 4 de novembro, Carlos Marighella foi assassinado na Alameda Casa Branca, em São Paulo.

Uma das últimas ações de Marighella foi a convocação de uma reunião com os participantes do sequestro. O encontro ocorreu em São Paulo. O líder da ALN desejava esclarecer pontos fundamentais:

De fato, ele foi pego de surpresa com o sequestro do embaixador. Argumentou que nem mesmo a ALN do Rio de Janeiro sabia que aquela ação ocorreria, fato que a expunha à repressão que certamente se desencadearia na cidade.[1]

Sem dúvida, ao sequestro do embaixador, a repressão política respondeu com uma campanha ainda mais violenta e com técnicas novas de processamento de dados. A emboscada que levou à morte de Marighella, realizada somente depois de 60 dias após a captura do embaixador, é a prova mais contundente do acerto da crítica do autor do Minimanual à ação — literalmente, uma passada excessiva para os pés de barro dos grupos revolucionários nas cidades. Recorde-se que, pelo menos em tese, a guerrilha urbana não constituía um fim em si mesmo, representando antes um momento de acúmulo de forças para a eclosão da guerrilha rural. Daí também a necessidade de manter um perfil na medida do possível discreto.

Manuel Cyrillo, participante do sequestro, esteve presenta na reunião em São Paulo. Sua lembrança das discussões é preciosa porque sintomática do impasse que em última instância levou a ALN à derrota militar. Eis como as ressalvas apresentadas por Marighella foram enfrentadas por Cyrillo:

(…) a gente respondeu com a própria teoria dele: está certo que a gente errou, está certo que a gente correu o risco de perder quadros no Rio, de perder trabalhos e contatos, enfim não potencializamos como poderia ser capitalizado, mas era um ato revolucionário, justo, correto, estava dentro da nossa linha. A gente tinha todo o direito de ir lá e fazer (p. 369, grifos meus).

Releia a citação, por favor.
Identificou o problema?
Pois é: curto-circuito. Beco sem saída?

Prática adversária da teoria?
Ora, uma prática pontuada por equívocos — a gente errou; a gente correu o risco; não potencializamos, etc. — não pode ser justificada com o recurso a uma teoria, independentemente de qual seja. E isso sobretudo numa organização revolucionária de esquerda, que, no mínimo, deveria conhecer o conceito marxista de práxis.

Um passo atrás.
Como sempre, retorno ao texto.
A posição defendida por Manuel Cyrillo encontra eco em passagens-chave do Minimanual — é preciso concedê-lo.
Vejamos:

(…) em qualquer hipótese e em qualquer circunstância, o dever de todo revolucionário é fazer a revolução.

(…)

Nenhum grupo de fogo deve ficar à espera de ordens de cima. Sua obrigação é agir (…), pois em tal organização nada se admite que não seja pura e simplesmente a ação revolucionária.[2]

Trechos cristalinos: a ação revolucionária daria a régua e o compasso da ALN. Portanto, como poderia Marighella opor-se à iniciativa, aliás, bem-sucedida, de capturar o embaixador americano? Porém, uma leitura, por assim dizer, menos imediata do Minimanual do guerrilheiro urbano permite resgatar a distinção essencial entre tática e estratégia. Por exemplo, na seção Objetivos das ações do guerrilheiro urbano, a cautela se afirma como conselheira permanente:

g) evitar a luta aberta e os combates decisivos com o governo, limitando a luta a ataques curtos e rápidos com resultados fulminantes (p. 24).

Dada a assimetria das forças em combate — de um lado, o exército regular e forças de repressão, de outro, um grupo reduzido de guerrilheiros —, as possibilidades de sobrevivência, especialmente no terreno minado dos centros urbanos, demandavam não somente uma rígida observância das regras de segurança da clandestinidade, como também o cuidado para não atrair a atenção do aparelho estatal, a fim de driblar o confronto direto.

Na seção Os sete pecados do guerrilheiro urbano, Marighella foi ainda mais claro. Lidas pelo avesso, suas advertências parecem prenunciar a vertigem cronológica com a qual iniciei esta coluna.

Repare se não tenho alguma razão:

O terceiro pecado do guerrilheiro urbano é envaidecer-se.

O guerrilheiro urbano que padece deste pecado pretende resolver os problemas da revolução desencadeando ações na cidade, mas sem se preocupar com o lançamento e a sobrevivência da guerrilha na área rural. Cego pelos sucessos obtidos, acaba organizando uma ação que considera decisiva, (…) sobrevém sempre o erro fatal (…).

O quarto pecado do guerrilheiro urbano é exagerar suas forças e querer fazer coisas para as quais não tem condição e não está à altura, por não possuir uma infraestrutura adequada. (p. 46, grifo meus)

Traduzindo: como ninguém ignora, a estratégia exige subordinar a tática ao propósito norteador. Em outras palavras, as ações da guerrilha urbana, no plano tático, deveriam propiciar a eclosão da guerrilha rural, no plano estratégico. Por isso mesmo, o grupo de fogo da ALN era conhecido como Grupo Tático Armado (GTA). Em alguma medida, é como se a ALN tivesse concentrado seus esforços exclusivamente na dimensão tática, deixando de lado o planejamento estratégico, vale dizer, o estabelecimento da luta no campo.

Se essa leitura for plausível, posso sugerir, à guisa de conclusão desta longa série, que a letra do Minimanual antecipou o colapso da ALN.

Coda
Numa leitura aguda do soneto Em liberdade, Wilberth Salgueiro concluiu sua análise sublinhando a ambiguidade que identifico no Minimanual:

(…) Marighella quis ser ambas as coisas: ser ave e ser sabre. O desafio — da liberdade e do poema — é saber equilibrar a pena na ponta.[3]

Noutra dicção, trata-se da tensão entre o arco e a lira. Nos termos de meu estudo, estamos diante da difícil dialética de um “excesso” de ação para um “déficit” de organização. Dado o privilégio praticamente absoluto da horizontalidade, terreno propício à tática, como coordenar forças no sentido do projeto maior, domínio da estratégia? E como realizar tal canalização de energia revolucionária sem um nível mínimo de verticalidade?

A imagem de um grupo revolucionário composto pela multiplicação de células autônomas, cuja ação independeria das decisões (inquestionáveis) de um comando central certamente promete uma dinâmica contagiante. O dilema, contudo, é derivado da própria potência, ou seja, a horizontalidade da organização favoreceu a explosão de uma miríade de ações bem-sucedidas, culminando no vitorioso sequestro do embaixador norte-americano. Ao mesmo tempo, o inegável êxito levou à concentração máxima das forças de repressão, cujo modus operandi combinou de maneira perversa autonomia e comando unificado, horizontalidade na obtenção de informações, por meio da tortura tornada política de Estado, e verticalidade no seu processamento combinado. O resultado foi devastador para todos os grupos revolucionários.

Não é tudo: a imagem de uma organização tentacular e ainda assim formada por células autônomas implica uma complexidade que não deixa de evocar o mundo contemporâneo das redes sociais — mas, claro, pelo avesso.

Muito pelo avesso.

Mas é hora de concluir, antes que outra longa série de artigos principie.[4]

 

[1] Edson Teixeira da Silva Junior. Carlos, a face oculta de Marighella. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 130. Nas próximas citações, mencionarei apenas o número de página.

[2] Carlos Marighella. Minimanual do guerrilheiro urbano, p. 1 e p. 12, grifo meu. Nas próximas ocorrências, mencionarei apenas o número da página citada.

[3] Wilbertyh Salgueiro. “Liberdade, de Carlos Marighella”. Rascunho, Novembro de 2017, p. 14.

[4] Aproveito para anunciar que muito proximamente a Editora Caminhos publicará esta série de artigos num livro. Terei então oportunidade para aprofundar aspectos do Minimanual e sobretudo para associar a estrutura da Ação Libertadora Nacional com elementos do mundo contemporâneo.

 

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

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