Midiosfera bolsonarista e dissonância cognitiva (6)

A extrema direita não teria chegado ao poder por meio de eleições democráticas se não tivesse atingido uma visibilidade impressionante nas redes sociais
01/03/2022

Extrema direita e simultaneidade digital
Na última coluna propus uma hipótese nova: a real diferença propiciada pelo universo digital consiste na imposição de uma simultaneidade inédita entre eixos antes claramente distintos: o evento, sua transmissão e a posterior recepção. Como se trata de traço fundador das redes sociais, e como, segundo minha hipótese, a extrema direita se apropriou da potência do universo digital, traduzindo para o campo da política muito de sua estrutura, essa forma de simultaneidade deveria nortear a ação da extrema direita.

Vejamos.

Diante de problemas complexos e que exigem respostas de curto, médio e longo prazo, qual a atitude dominante na extrema direita? Simples: concentrar as respostas em ações imediatas e sempre de impacto midiático.

Dois ou três exemplos?

A questão do emprego num mundo cada vez mais automatizado, e que altera radicalmente a dinâmica do mercado de trabalho, é um dos temas mais delicados do mundo contemporâneo e do futuro próximo. Chegamos a uma economia capaz de produzir riquezas em escala sem precedentes, mas que, ao mesmo tempo, aumenta exponencialmente o número de desvalidos em proporção de igual modo sem paralelo. Num cenário que caminha celeremente para o fortalecimento, talvez até a centralidade, da economia digital, o emprego tende a tornar-se um problema tão sério quanto o da preservação ambiental: duas “espécies” ameaçadas de extinção, por assim dizer. Não há resposta fácil para essa questão, que será decisiva nas próximas décadas.

Pois bem: não é verdade que a extrema direita reage a esse desafio investindo em projetos de curtíssimo prazo, recorrendo ao mecanismo arcaico do bode expiatório, buscando culpados de ocasião, a fim de apaziguar o descontentamento crescente com o atual modelo econômico? Na Europa, culpa-se o imigrante, que passa a ser atacado do modo mais xenofóbico possível. Em Portugal, André Ventura, líder da extrema direita local, e dirigente do partido-movimento Chega, notabilizou-se tristemente por declarações odiosas, especialmente contra africanos e ciganos. Foi mesmo processado e condenado a pagar indenização pelo teor racista de suas posições. Na França a posição intolerante, no limite irracional, em relação aos imigrantes sempre forneceu o impulso maior dos políticos de extrema direita. Nos Estados Unidos, o imigrante hispânico é demonizado e a “solução” imaginada por Donald Trump — a promessa de campanha “Build the Wall” — é uma metonímia selvagem dessa forma de ação política imediatista e midiática.

No caso brasileiro, dada a urgência do problema da segurança pública, uma vez que os índices nacionais de mortes violentas são alarmantes e superam países em guerra civil aberta (!), a extrema direita bolsonarista pavimentou seu rumo ao poder por meio de propostas imediatistas e que mimetizam a violência que em tese pretendem combater: armar a população, endurecer as penas, militarizar ainda mais as forças de segurança, promover uma trágica espetacularização da repressão policial — claro, sempre em áreas pobres dos grandes centros urbanos.

No plano da linguagem própria do universo digital, a extrema direita soube habilmente apropriar-se daquele eixo de simultaneidade e todo seu discurso aposta no aqui e agora, no calor da hora, na eterna urgência de um presente eterno.

(A extrema direita compreendeu o brave new world do universo digital com a naturalidade de uma respiração artificial.)

Não é tudo: essa estratégia lança mão de narrativas polarizadoras, calcadas na retórica do ódio, isto é, numa linguagem de marcada violência simbólica, a fim de produzir um intenso engajamento nas redes sociais por meio da criação de inimigos em série. O impacto dessa estratégia tem levado a extrema direita ao poder através de eleições democráticas — em boa medida, entender esse paradoxo é o objetivo desta longa série de artigos.

Pelo contrário, no campo da esquerda democrática, os mesmos problemas são abordados num registro temporal muito diverso, se não oposto. Em lugar do agora, pondera-se a estrutura, em lugar do imediato, privilegia-se o longo prazo. Numa sociedade cada vez mais angustiada pela vertigem de um tempo que devora a própria ideia moderna de temporalidade, a esquerda precisa reavaliar suas práticas políticas e suas articulações discursivas. Será preciso conciliar preocupação imediata — pulsão legítima dos que se encontram em situação de vulnerabilidade — e ações estruturais — indispensáveis para a solução real de dificuldades e impasses sistêmicos.

Compreende-se, assim, que, na celeridade do ritmo digital e na selva selvaggia da economia da atenção, a extrema direita transnacional soube aproveitar-se desse momento histórico ímpar, alcançando uma visibilidade diretamente proporcional à capacidade de adaptar-se às características da comunicação digital.

Há mais.

Guerra cultural e simultaneidade
A consideração do eixo da simultaneidade como o motor da ação política da extrema direita permite inclusive que se analise a questão da guerra cultural sob um ângulo novo, nem tanto do ponto de vista de sua matéria quanto do ponto de vista de seu impacto no aqui e agora do dia a dia de centenas de milhões de pessoas em todo o mundo.

Arrisco a possibilidade.

A extrema direita não teria chegado ao poder por meio de eleições democráticas se não tivesse atingido uma visibilidade impressionante nas redes sociais. Ao mesmo tempo, tal visibilidade não teria sido alcançada sem a produção de narrativas polarizadoras com grande capacidade de produzir engajamento apaixonado e imediato.

Ora, as teorias conspiratórias da extrema direita transnacional são todas desse jaez, especialmente as gelatinosas noções de marxismo cultural e identidade de gênero, ambas a serviço de um fantasmático globalismo, essa nova face do comunismo pós-soviético — como ninguém ignora, não é mesmo?

(E não se esqueça nunca: a KGB promoveu a dissolução da União Soviética em dezembro de 1991 para mais facilmente dominar corações e mentes através do globalismo. Elementar, caras e caros!)

Explicito meu raciocínio: as consequências das teorias conspiratórias da extrema direita afetam imediatamente o cotidiano de todo aquele que se deixar seduzir. Franz Kafka fantasiou sereias que desconcertavam porque não cantavam; já no horror vacui das redes sociais, as sereias extremistas entoam sem trégua um canto estridente que mantém seus ouvintes reféns da própria estridência. Afinal, o globalismo opera, sempre em nota ardilosa! Por meio do marxismo cultural instila mensagens subliminares na esfera do dia a dia: uma singela telenovela torna-se o lugar privilegiado para difundir valores e hábitos que almejam nada menos do que solapar o edifício inteiro da civilização greco-romana, judaico-cristão. Séries da Netflix? Pura lavagem cerebral! Música pop? Preste atenção nas letras: a subversão dos costumes não poderia ser mais completa. E, perfídia máxima, a ideologia de gênero, esse instrumento globalista por excelência, cujo objetivo é destruir a célula básica da sociedade: a família!

Esqueçamos o caráter obviamente caricato dessas teorias conspiratórias. O que interessa é a caracterização de seu impulso: elas se encontram sob a égide da simultaneidade do aqui e agora de filmagens eventuais em escolas que “provam” a onipresença de uma “terrível doutrinação esquerdista” em avanço no mundo. Tais vídeos viralizam com a rapidez de um raio. Não deixe de registrar o estabelecimento comercial “progressista” e seus banheiros “neutros”. Ative todos os sinais de alerta, pânico até, diante de qualquer tentativa de “modificação esquerdista” da linguagem.

Em curso, claro está, uma autêntica cruzada.

(Deus vult – e o que dizer do latim sem declinações dos adeptos da ressurreição da “alta cultura”?)

Mas não se trata de longa viagem a uma distante e mítica Jerusalém, porém de fatos concretos, “objetivos”, que se passam diante de nossas retinas tão fatigadas. A guerra cultural é bem uma pedra no meio do caminho; mas um caminho que se cruza numa vertigem que devora toda a paisagem.

O êxito transnacional da extrema direita, se não me equivoco demasiadamente, depende intrinsecamente dessa manipulação da Jetztheit benjaminiana, dessa agoridade sempre mais intensa que emoldura o universo digital.

E a monetização?
Se você ainda está aí, na próxima coluna trato do pulo do gato da extrema direita transnacional: a monetização da política.

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

Rascunho