Midiosfera bolsonarista e dissonância cognitiva (4)

A visão do mundo da extrema direita é um exemplo acabado da lógica algorítmica transferida para o universo das relações sociais e políticas
O bolsonarismo é incompreensível sem o sistema midiático de desinformação programática
01/01/2022

Até aqui
Nas três primeiras colunas desta série principiei discutindo a hipótese da onipresença da midiosfera extremista no cenário político contemporâneo e sua responsabilidade no avanço transnacional da extrema direita. Inicialmente o estudo de caso privilegiado foi o brasileiro, pois o bolsonarismo é incompreensível sem o sistema midiático de desinformação programática e de criação de realidade paralela por meio da manipulação de notícias falsas e de teorias conspiratórias. Desse modo, monta-se uma autêntica usina de narrativas polarizadoras, cuja finalidade é gerar inimigos em série, a fim de manter as massas digitais em permanente estado de mobilização.

(Não surpreenderá, pois, que conclua esta série recorrendo à teoria mimética de René Girard e seus estudos acerca do mecanismo do bode expiatório.)

Num segundo momento, resgatamos a teoria da dissonância cognitiva, desenvolvida por Leon Festinger. Contudo, foi necessário impor à reflexão de Festinger uma torção nada discreta. Vale dizer, se, em sua abordagem, o psicólogo social norte-americano desejava entender os mecanismos de busca da dissonância perdida, pelo contrário, e motivado pela paisagem atual um tanto apocalíptica, meu esforço consiste em imaginar uma circunstância nova, na qual a produção de dissonância cognitiva torna-se um fim em si mesmo — fenômeno que jamais ocorreu a Leon Festinger.

As pontas se atam (ou quase): a midiosfera extremista é a matriz de dissonância cognitiva no cenário das redes sociais, por meio do emprego hábil e interessado das ferramentas propiciadas pelo universo digital.

Hora, pois, de seguir adiante.

Uma hipótese (ou talvez duas)
Peço licença para uma breve pausa e uma longa digressão.

(Na verdade toda a coluna. Quem sabe também a próxima.)

Vou pensar em voz alta: você me acompanha?

Esboço: a lógica algorítmica do universo digital compartilha afinidades eletivas e estruturais, não necessariamente planejadas, com a visão do mundo da extrema direita.

Não é tudo: a lógica do empreendedorismo predador do neoliberalismo contemporâneo compartilha afinidades eletivas e estruturais, não necessariamente planejadas, com a visão do mundo da extrema direita.

Mais: a temporalidade especial implícita na dinâmica das redes sociais compartilha afinidades eletivas e estruturais, não necessariamente planejadas, com a visão do mundo da extrema direita.

Se não vejo mal, o avanço transnacional da extrema direita relaciona-se diretamente com essa tripla conjunção.

Antes de principiar, recordemos o ponto fundamental: as afinidades estruturais que intuo não foram necessariamente planejadas, ou seja, não se trata de um acordo ideológico ou de pacto político, porém do encontro de elementos presentes no mesmo contexto.

Tempestade perfeita?

(Nem os traços de Giorgione seriam tão eloquentes.)

Algoritmo e extrema direita?
Como se sabe, a lógica algorítmica do universo digital implica uma operação simples de inclusão e exclusão contínuas. Compreende-se o motivo desse binarismo constitutivo: dado o volume inédito do fluxo ininterrupto de informações, em ritmo propriamente vertiginoso, impõe-se uma forma sumária de processamento e de triagem; caso contrário, o sistema entraria em colapso inevitável. No dia a dia, o resultado dessa operação é um paradoxo, cujo deslinde é condição indispensável para o enfrentamento da extrema direita.

Explico: todos temos acesso a um número antes inimaginável de informações. Ao mesmo tempo, contudo, a lógica do algoritmo reduz drasticamente o horizonte dos dados disponíveis. Isto é, ao buscarmos aleatoriamente esta ou aquela notícia, este ou aquele produto, este ou aquele perfil de usuário, passamos a receber uma massa inédita de dados, é bem verdade, porém, sempre informações do mesmo espectro pesquisado em nossas primeiras interações. Mais um passo e se identifica o fenômeno da multiplicação de bolhas, resultado da mesmice tornada método e muito rapidamente desejo.

O que estou tentando formular se torna cristalino se pensarmos em qualquer aplicativo de texto. Conhecemos muito bem a experiência de enviar uma mensagem e imediatamente lamentar pelas inesperadas correções que sempre pontuam as frases que escrevemos; por vezes, alterando radicalmente o sentido. O que ocorre é que o aplicativo reduz a possibilidade de nosso vocabulário a um número determinado de palavras meramente usadas em primeiro lugar — não são, claro, as “únicas” que empregamos em nossa paleta de vozes, mas foram as primeiras usadas naquele aplicativo em particular. Desse modo, nosso universo linguístico é talhado à medida arbitrária do aplicativo, sem relação alguma com nosso potencial de pensamento e de expressão.

Reitero um aspecto: esse traço, em si, não pode ser condenado! Trata-se, na verdade, da característica definidora de toda organização sistêmica, na aguda análise de Niklas Luhmann, ao desenvolver sua teoria dos sistemas. Vale dizer, sistemas autopoiéticos, aqueles que em alguma medida determinam as leis de seu funcionamento, mas sempre em interação com influxos recebidos pelo meio externo, dependem da técnica de redução de complexidade. Não é difícil concordar com a postulação: um sistema que somente recebesse influxo sem algum tipo de seleção, isto é, de redução da complexidade do influxo recebido, deixaria de ter forma: tornar-se-ia propriamente amorfo. Imagine essa equação em face da vertiginosa circulação de dados no universo digital: o ritmo das redes sociais, nesse sentido, encontra na lógica do algoritmo sua razão de ser.

Melhor: me ocorre um paralelo instigante.

Vamos lá: pense nos Bichos, obra viva de Lygia Clark: esculturas simples, cujas linhas orgânicas sugerem formas geométricas. Formas em suspensão que encontraram um equilíbrio homeostático e por isso repousam sua potência de configurações numa forma qualquer. Equilíbrio temporário, ressalte-se, pois, tornado participante, o observador deve tocar levemente na estrutura, que, como bailarina cega, se precipita em movimentos desordenados até voltar a um novo ponto de equilíbrio, à precária forma de ocasião. Ora, se, ao ser acionada pelo participante, o balé de formas não fosse interrompido pelo repentino retorno a um ponto de equilíbrio, os Bichos não chegariam a constituir uma obra, seriam antes a descoberta inesperada do moto-perpétuo.

Em outras palavras, o caráter binário da lógica algorítmica não é em si mesmo “condenável”, já que diz respeito ao modo sistêmico de lidar com uma massa compacta de dados em disparo diuturno.

Mas então qual o problema?

(Notas iniciais.)

O improvável: retas paralelas que se cruzam.

A visão do mundo da extrema direita é um exemplo acabado da lógica algorítmica transferida para o universo das relações sociais e políticas. O mesmo caráter dicotômico, idêntica máquina de exclusões contínuas, intolerância completa em relação ao que não seja espelho, invisibilização consequente do outro.

A invenção de inimigos-catalizadores é o artifício discursivo recorrente: o bolsonarismo lança mão do surrado “medo vermelho”, a eterna ameaça comunista de tomada do poder via doutrinação ideológica; na Europa, o imigrante é o gatilho perfeito que aciona receios e impulsiona ressentimentos que levam ao poder projetos autoritários sem pudor de dizer seu nome; nos Estados Unidos, o progressismo e também a imigração desempenham com eficácia o papel de espantalhos, que Donald Trump e seus seguidores lançam mão com eficiência, aproveitando-se ainda dos velhos dilemas da divisão do país.

A polarização política, nesse sentido, é uma estrutura derivada tanto da rigidez binária do algoritmo quanto da visão do mundo dicotômica da extrema direita. Acordo certeiro entre palavras e coisas que principiou tomado de assalto o século 21.

O que fazer?

Não sei.

Coda
Nas próximas colunas, discutiremos os dois últimos vértices do triângulo: “empreendedorismo e extrema direita ” e “temporalidade digital e extrema direita ”. Triângulo mimético?

Tudo a seu tempo: concluiremos esta série recorrendo à teoria mimética, tal como proposta pelo pensador René Girard.

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

Rascunho