Midiosfera bolsonarista e dissonância cognitiva (11)

A teoria mimética convida-nos a compreender o mimetismo em nossas ações cotidianas
René Girard, autor de “Mensonge romantique et vérité romanesque”
02/08/2022

Mímesis de apropriação
Nesta já longa série de artigos, chegou a hora de tratar da teoria mimética.

Ao publicar Mensonge romantique et vérité romanesque (1961), René Girard revelou o mecanismo do desejo mimético inicialmente na literatura moderna, demonstrando que o desejo, em lugar de autônomo, depende sempre da figura de um mediador; figura essa orientadora da direção do nosso olhar. Tal intuição deu origem à complexidade do pensamento girardiano. Seu corolário denuncia a ilusão de autonomia do sujeito, pedra de toque de concepções românticas, ainda hoje dominantes, baseadas na noção idealizada de uma subjetividade autossuficiente, porque autotélica. Nesse horizonte, a relação amorosa é sempre compreendida como o vínculo direto entre dois sujeitos, ideal expresso na fórmula consagrada do “amor à primeira vista”. No horizonte descortinado pela teoria mimética, vivencia-se uma realidade muito diferente.

Desse modo, Girard revelou a instabilidade do “eu” associada à necessidade de recorrer a “outros” na configuração da identidade. Tal característica, além de abalar de forma definitiva os fundamentos autotélicos do sujeito, levou à descoberta de uma zona sombria no processo mimético. Ora, se adoto alguém como meu modelo, passarei a desejar os objetos por ele desejados. Essa circularidade é tanto mais forte quanto menos me dou conta de sua emergência. Com o passar do tempo, o conflito parece inevitável, pois, se desejo a mesma pessoa ou o mesmo objeto que meu modelo, a rivalidade tende a crescer e paulatinamente substituirá o caráter “neutro” geralmente atribuído à imitação. O desejo mimético, pelo contrário, esclarece que muito provavelmente buscarei apropriar-me do objeto desejado por meu modelo. A mediação transforma-se em confronto aberto e a mímesis, ao tornar-se de apropriação, revela uma pulsão conflituosa cujos desdobramentos foram minuciosamente estudados por Girard e compõem a espinha dorsal de sua teoria.

O pensador francês concebeu duas formas de mediação.

Na mediação externa, o modelo está tão distante do sujeito mimético que o risco de confronto desaparece: o Dom Quixote de Cervantes adota o personagem Amadis de Gaula como modelo supremo, mas, salvo engano, jamais poderá encontrar-se pessoalmente com o lendário cavaleiro. Por isso mesmo, o confronto aberto não terá vez. Daí, Girard deriva o corolário: quanto mais externa a mediação, mais pacífico será o resultado da imitação.

Pelo contrário, na mediação interna o modelo se encontra perigosamente próximo do sujeito mimético: é seu professor; seu amigo bem-sucedido; seu vizinho, cuja mulher cobiçamos — sim, é isso mesmo: cobiçamos. A teoria mimética convida-nos a compreender o mimetismo em nossas ações cotidianas, em lugar de defini-lo como uma abstração sem vínculos com o dia a dia. Nessa circunstância, o desejo mimético se converte rapidamente em rivalidade e essa pode originar disputas irreconciliáveis — tema predileto de muitos romancistas. Daí, Girard deriva o corolário: quanto mais interna a mediação, mais violento será o resultado da imitação. Na visão do autor, a análise minuciosa da mediação interna e de seus inúmeros desdobramentos caracteriza o romance moderno.

No passo seguinte, dado em La violence et le sacré (1972), ele estudou a presença potencialmente desagregadora da mímesis nos primórdios da organização social, buscando identificar os mecanismos subjacentes ao processo civilizatório. Segundo Girard, esse processo dependeu da descoberta de um mecanismo controlador da violência desencadeada pelo desejo mimético. Recorde-se, aqui, a derivação apropriativa do comportamento mimético: ao imitar meu modelo, terminarei por desejar os objetos que ele possui e farei o possível para deles me assenhorear. Imagine-se o alcance desse tipo de rivalidade quando transferida para a totalidade de um grupo social; afinal, o desejo mimético é contagioso e pode agravar-se na exata proporção em que um número maior de agentes estiver envolvido no curto-circuito provocado pela rivalidade mimética. Se nenhuma forma de controle da dimensão apropriativa da mímesis for desenvolvida, a própria formação social pode vir a desintegrar-se em meio ao conflito generalizado. Eis o caráter paradoxal do fenômeno: sem a imitação, não se pode criar vínculos comuns, não se pode sequer falar a mesma linguagem; porém, o potencial conflituoso do ato imitativo levará à disputa pela posse de objetos desejados através da mesma imitação que num primeiro momento tornou a coesão social possível.

O bode expiatório
No instante em que a crise mimética atinge seu auge, ameaçando dissolver os laços sociais, o mecanismo do bode expiatório, tal como descrito por Girard, oferece uma alternativa ímpar. No auge da violência endógena, um fenômeno ocorre, e, devido ao êxito com que permite controlar os efeitos desagregadores da mímesis, tende a ser repetido até alcançar a regularidade e o formalismo de um rito fundador: a violência, antes indiscriminada, de todos contra todos na disputa fratricida pelo(s) mesmo(s) objeto(s), é dirigida arbitrariamente contra um único membro do grupo. Todos então se voltam contra ele, canalizando a violência que, de geral e inespecífica, portanto anárquica e autodestruidora, adquire uma direção única, por isso mesmo, reordenadora do próprio grupo. O bode expiatório é assim sacrificado e, ao final do ritual, a ordem retorna: a violência, de origem mimética, engendra o sagrado, na figura da restauração da ordem social através do assassinato fundador — e esses termos pertencem ao vocabulário girardiano. Como resultado do processo, o bode expiatório passa a ser divinizado, pois seu sacrifício resolveu o conflito, restaurando a ordem e sobretudo colocando à disposição do grupo um mecanismo mediador da violência.

Contudo, para fazer justiça à complexidade do sistema mimético é necessário reconhecer que Girard não vislumbra a história como um processo linear e teleológico, mas como uma espiral, animada por uma matriz comum, mas cujos desdobramentos não podem ser determinados a priori. Tal distinção é fundamental, embora seja negligenciada com frequência pelos seus críticos mais apressados. Girard nunca afirmou que o mecanismo do bode expiatório solucionará sempre os conflitos miméticos e que tal resolução assumirá sempre as mesmas formas. Por que não imaginar situações em que grupos sociais desintegraram-se precisamente porque não desenvolveram um mecanismo de controle da violência endógena ocasionada pelo desejo mimético? Girard defende que os grupos sociais que organizaram associações cada vez mais complexas descobriram o mecanismo do bode expiatório; contudo, cada grupo o fez a seu modo e sem necessariamente trilhar um caminho único. Posteriormente, esse mecanismo foi aperfeiçoado mediante a criação de ritos e instituições particulares. Em outras palavras, a hipótese do assassinato fundador fornece apenas a matriz geradora e não uma forma determinada, sempre a repetir-se — o equívoco mais comum dos críticos apressados da teoria mimética. Pelo contrário, aquela matriz é experimentada através de uma pluralidade de formas; formas essas naturalmente adaptadas a contextos específicos. De um lado, portanto, Girard propõe a existência de uma matriz universal: o processo civilizatório transforma a violência mimética em organizações sempre mais complexas através da sacralização da vítima. De outro lado, porém, Girard reconhece que as formas de atualização dessa mesma matriz serão necessariamente diversas entre si, pois serão irredutivelmente particulares. Nesse horizonte, Michel Serres pôde considerar Girard um autêntico “Darwin das Ciências Humanas”; afinal, sua teoria busca oferecer uma chave interpretativa da origem da organização social, com base na resolução do conflito mimético. Contudo, não se deve esquecer da condição sine qua non a governar todo o processo: o bode expiatório somente faculta a resolução do conflito se um complexo mecanismo estiver em ação. É fundamental que o grupo realmente acredite em sua culpa: para o grupo, não se trata de uma vítima, arbitrariamente escolhida para canalização da violência endógena, mas de um membro do grupo objetivamente culpado e, por isso, um verdadeiro bode expiatório. Caso contrário, tratar-se-ia de um simples caso de autoengano deliberado, incapaz de converter a violência mimética em instituições sociais de caráter sagrado, pois, em lugar de um acontecimento ritual, o assassinato fundador, estaríamos diante de um simples linchamento.

Na próxima coluna, começaremos a rematar esta série, associando o universo digital e o mundo das redes sociais ao mecanismo do bode expiatório.

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

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