Cuando calienta el sol: verões e versões (2)

A importância de uma música para o surgimento do gênero “canción de verano”
O cantor Trini López, intérprete também de Cuando calienta el sol
31/12/2019

A forma da angústia
O êxito internacional de Cuando calienta el sol foi fundamental para o surgimento do gênero “canción de verano”. E, como a própria denominação sugere, trata-se de um gênero solar, necessariamente avesso à melancolia. De fato, as interpretações que discutimos na última coluna (edição de setembro #233), para além de suas diferenças, compartilhavam o mesmo impulso, qual seja, negligenciar a separação amorosa, explicitada na letra da canção, em favor da imagem-imã de pura felicidade, “cuando calienta el sol”. Nesse momento-só-luz, a quem ocorreria que tristeza não tem fim?

No fundo, mesmo uma interpretação sincopada e sutilmente sensual como a de Trini López não logra fugir desse efeito apaziguador, quase encantatório, abrindo um curioso hiato entre os versos iniciais e o restante da canção. Veja se concorda comigo: https://www.youtube.com/watch?v=woosWXsWXlg

Em campo oposto, encontra-se a performance de Javier Solís: aí se desenha uma autêntica forma da angústia, que não cessa de surpreender pela complexidade que impõe à recepção de uma singela canción de verano. Para melhor apreciar a hermenêutica de Solís, recorde-se a letra da canção:

Amor, estoy solo aquí en la playa
Es el sol quien me acompaña
Y me quema, y me quema, y me quema

Uma pausa: esses versos iniciais são decisivos, pois esclarecem que o sujeito da canção está solo aquí en la playa. O caráter dêitico do pronome demonstrativo adiciona urgência à evocação: Amor. A solidão, portanto, é a atmosfera dominante da música, que, por isso mesmo, não é exatamente (ou pelo menos exclusivamente) solar. Ademais, os versos que fazem a mediação entre esse sentimento inicialmente expresso e a canção como um todo, y me quema, y me quema, y me quema, permitem supor que, provavelmente de olhos fechados, o sujeito revisita um passado, não muito distante, no qual, talvez na mesma praia, ele não estivesse desacompanhado.

(E sabemos com quem estaria!)

De modo menos oblíquo: há um tanto de delírio na sequência dos versos (no mínimo, nada nos impede de imaginá-lo):

Cuando calienta el sol aquí en la playa
Siento tu cuerpo vibrar cerca de mí
Es tu palpitar es tu cara, es tu pelo
Son tus besos, me estremezco 

Cuando calienta el sol

Por isso, ao dizer, siento tu cuerpo vibrar cerca de mí, o sujeito da canção se refere à memória de um corpo que não mais se encontra ali, isto é, aquí en la playa. Cuando calienta el sol, o sujeito despertou e o corpo não mais estava

(Você me entende — confio.)

Voltemos à letra:

Cuando calienta el sol aquí en la playa
Siento tu cuerpo vibrar cerca de mí
Es tu palpitar, tu recuerdo
Mi locura, mi delirio, me estremezco

Pausa final: o próprio sujeito reconhece: mi locura, mi delirio; agora, a solidão se transforma em angústia pela ausência (definitiva?) da mulher que parece ainda amar — ou pelo menos ele não esqueceu completamente a intensidade do amor que sentiu (sentiram?). Círculo do qual não se escapa com facilidade, como evidencia o último verso, espécie de eterno

Cuando calienta el sol

A interpretação mais fiel a esse duplo sentimento de solidão e de angústia é a de Javier Solís, e, como sempre, cabe a você avaliar: https://www.youtube.com/watch?v=GA5KyO-U8sI

O que achou? Uma performance que é pura potência, não é mesmo? Desde a declamação dos três primeiros versos, Javier Solís resgata o traço noturno dessa canción de verano, pois o desencontro e não o namoro emoldura a música. Escute com atenção como o cantor transforma o último verso, “Cuando calienta el sol”, numa espécie de lamento, resignação

A forma da superficialidade
Nos anos de 1990, Cuando calienta el sol voltou a fazer um grande sucesso internacional, agora na voz de Luis Miguel. Sua intepretação radicalizou as premissas solares de uma canción de verano, convertendo a solidão e a angústia de Javier Solís em pura arte de encontros e uniões alegres, embora triviais. O plural é importante: como se vê no vídeo do cantor, nunca ninguém está sozinho; pelo contrário, o tempo todo, todos estão cercados de outros tantos, que, por sua vez, se veem rodeados de todos os outros que porventura não tivessem ainda aparecido na tela.

Você me dirá se exagero: https://www.youtube.com/watch?v=gTkJ-nP6pXY

O cenário é claro: férias de verão numa locação paradisíaca; nesse horizonte, não lidamos com paisagens, mas com locações. Antes mesmo de escutarmos os primeiros acordes, vemos três palmeiras e escutamos o canto de pássaros, que logo surgem em revoada.

(Nem mesmo na natureza a solidão é tolerável.)

Eis que um grupo de jovens se prepara para um dia que promete ser perfeito — e como não o seria na companhia do astro-rei Luis Miguel? Daí, cuando calienta el sol, as brincadeiras principiam imediatamente e só se tornam mais intensas durante a canção.

Em nenhum momento solidão alguma se insinua. Todos os jovens despertam ao mesmo tempo; o café da manhã é coletivo; os jogos na praia envolvem a todos; os sorrisos são contagiosos; a felicidade por fim deixou de ser um problema filosófico para resolver-se em mero gregarismo. Definitivamente, a solidão é um corpo estranho à performance de Luis Miguel. Sem dúvida, a ênfase no aspecto solar explica o êxito de sua gravação, que, desse modo, dá as mãos ao espírito do gênero canción de verano, e isso desde os seus primórdios.

Operação ainda mais bem-sucedida se recordarmos outra vez os três versos iniciais da canção:

Amor, estoy solo aquí en la playa
Es el sol quien me acompaña
Y me quema, y me quema, y me quema

Ora, como ignorar tão olimpicamente a atmosfera que inaugura a própria música: Amor, estoy solo aquí en la playa… Com exceção de Javier Solís, as demais interpretações domesticaram a solidão por meio de uma ênfase ora no ritmo, ora na melodia, eclipsando a angústia que atravessa a música, estruturada pela certeza de uma perda definitiva.

Luis Miguel não!

O astro internacional é mais direto: em sua versão, os três primeiros versos, a serem mais declamados do que cantados, são apenas um óbice, uma ruína anacrônica que deve ser suprimida.

Você se deu conta, não?

No vídeo, a música começa depois dos três versos-estorvo, finalmente subtraídos. Agora, pelo contrário, Luis Miguel pode cantar (e a plenos pulmões, pois voz não lhe falta):

Cuando calienta el sol aquí en la playa
Siento tu cuerpo vibrar cerca de mí.

E não é mais um corpo abstrato, distante, porém tornado presente pela memória. Nada! São muitos corpos, mas muitos mesmo, corpos aliás bem à mostra, num autêntico milagre da multiplicação de corpos que se concentram ao redor do astro.

O tempo todo.
Sempre.
E ainda mais.
Quem sabe um dia, Luis Miguel não sentirá necessidade de

Amor, estoy solo aquí en la playa

Resta saber se algum público desejará escutar tal versão.

(Pelo menos, numa performance de Luis Miguel.)

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

Rascunho