O escritor selvagem

Entrevista com Joarez Sofiste 
Joarez Sofiste
01/04/2009

Joarez Sofiste nasceu há 49 anos, em Divino do São Lourenço (ES). Na adolescência, mudou-se para a cidade de Iporã, no oeste do Paraná. Lá, foi ensacador, caminhoneiro e promotor de vendas. Mudou-se para Curitiba há 24 anos, onde mantém, faz duas décadas, uma oficina mecânica. Foi o trabalho na oficina que, segundo ele, o fez partir para a filosofia. Em 1993, começou a ler obras de auto-ajuda. Desde então, vem dedicando boa parte de seu tempo à leitura e à escrita. Em abril, lança pela editora Quadrioffice o seu primeiro livro, A problemática do homem — A chave para o autoconhecimento, ensaio que lhe tomou dois anos de trabalho. Entre os 110 títulos que mantém na biblioteca da oficina, estão obras de escritores como Bernardinho e Fritjof Capra. Graças a suas idiossincrasias, o autor estreante adianta que um filósofo acadêmico clássico o consideraria uma espécie de “escritor selvagem”.

Sofiste conta que antes, no interior, alimentava o sonho de ser mecânico; agora, sonha em ser palestrante. Determinado, já tem três palestras marcadas, por conta do lançamento de seu livro. Vai falar para grupos de estudos filosóficos. As universidades já começaram a mostrar interesse.

Casado, pai de dois filhos, Joarez Sofiste garante que, para ele, a questão existencial está “quase compreendida”. Sofre de ansiedade e de angústia apenas raramente, e dispensa preces e meditações. “Um homem só precisa da sua liberdade”, afirma.

Na infância, qual foi seu primeiro contato marcante com a palavra escrita?
Com um livro chamado O menino da mata e seu cão Piloto [de Vivaldi Moreira], da coleção Era uma vez. Eu tinha oito anos de idade.

E quanto à literatura e a filosofia? De que forma elas apareceram na sua vida?
A literatura a partir de meus 23 anos, quando uma psicóloga recomendou-me leituras para aliviar a tensão de meus questionamentos, perguntas que a vida não conseguia me responder. Só então percebi que eu teria que respondê-las a mim mesmo. Os livros foram o primeiro passo para que eu me libertasse de minha própria prisão mental. A filosofia chegou mais tarde, em 1993, em pequenas doses, quando comecei a me questionar quanto à minha pequena empresa e ao meu excesso de trabalho, que tipo de vida eu queria levar e que tipo de consciência queria formar. Esqueci-me inclusive, de casar; lembrei-me disto somente aos 41 anos. A filosofia chegou para valer em março de 2007, quando comecei a estudar profundamente o assunto e a fazer um manuscrito de tudo que lia, um documento de cerca de 700 páginas. Foi quando surgiu a idéia de escrever um livro. Estudei 2,5 mil horas aproximadamente, em menos de dois anos, sozinho, dentro de minha casa. Acabei por encontrar na filosofia a chave que me libertou de uma formação pessimista, supersticiosa, sentimentalista, medrosa e dogmática.

Que espaço os livros ocupam no seu dia-a-dia? A leitura, de alguma forma, influencia o seu trabalho e o seu cotidiano?
Nos últimos dois anos, os livros vêm me ocupando em média entre três e quatro horas diárias. As leituras me influenciaram tanto nos últimos tempos que mudei completamente minha personalidade — e para melhor. Meu conceito de trabalho já não é mais o mesmo. Melhorei meu relacionamento com a família e com meus funcionários, e acabei com a rotina, a ansiedade e a angústia que tanto empobrecem o espírito humano. Hoje, compreendo que somente eu sou responsável por aquilo que conquisto; afirmo com convicção que a liberdade é o fundamento de todos os nossos valores, que o medo é o mais cruel carrasco da humanidade e que a consciência de cada homem é a causa e o motivo de tudo, inclusive, dos seus males. Libertei-me dos dogmas, das superstições, das idéias primitivas e infantis que carregava comigo desde a infância. Percebi que a razão a tudo ilumina e que um homem livre não pode andar ignorantemente atrás de ignorantes. Estou em uma profunda busca de meu equilíbrio pessoal e, através das boas leituras, percebi que é possível chegar lá, mas que terei que tomar cuidado com o excesso de contemplação interior. Todo equilíbrio requer brandura. Quando mudarmos, tudo à nossa volta mudará conosco.

Quais são seus livros e autores prediletos?
Os livros que me marcaram, de início, foram de auto-ajuda. O sucesso não ocorre por acaso, de Lair Ribeiro, e A lei do triunfo, de Napoleon Hill. Mais tarde, foi a filosofia acadêmica, com A república, de Platão, Humano, demasiado humano, de Nietzsche, Ensaios, de Ralph Waldo Emerson, e Fundamentos da filosofia, de Gilberto Cotrim. Leituras diversas sobre física quântica e Fernão Capelo Gaivota, de Richard Bach. Sou mais de gostar de um pouco de cada coisa. Admiro, com certas reservas, Sócrates, os iluministas, Descartes, Nietzsche e Platão. Gosto muito das filosofias que fazem uso do ensino simbólico, tudo que agregue valores à minha cultura pessoal. Quanto aos filósofos da antiguidade e aos religiosos, tenho dúvidas se tudo o que atribuem a eles é realmente deles, ou se os responsabilizaram pelo que outros homens disseram. Procuro me livrar de leituras que são convictas das suas verdades. Normalmente, nossas certezas são verdadeiras dúvidas. Afasto-me das ideologias baratas quando as percebo. Não defendo nenhum crédulo, fujo dos dogmáticos e dos autores que defendem os “ismos” e os “istas”. As palavras com essas terminações nos arrastam para a idéia de perfeição ou para sectarismos. Por esse e outros motivos, não sou fã ardente de nenhum autor. Defendo a liberdade de consciência e respeito a opinião de cada um, sem precisar agarrar-me a elas.

Você possui uma rotina de leituras? Como escolhe os livros que lê?
Não possuo uma rotina de leituras por não conseguir me ver forçado a uma meta obrigatória. Escolho os livros que vou ler dependendo das minhas necessidades momentâneas. Normalmente, tenho já muito bem definido o que quero ler, mas aceito sugestões de boas leituras de amigos e principalmente, dos bons vendedores das livrarias.

Você percebe na literatura ou na filosofia uma função definida ou mesmo prática?
Sim, é exatamente o que me faz ler. Tanto as definições honestas de alguns autores quanto a praticidade de suas idéias me fizeram mudar os meus conceitos. Desde muito cedo, recebemos muitas falsas opiniões como sendo verdadeiras. Não precisamos aprender a maioria das coisas que nos ensinam. A literatura e a filosofia exerceram papel fundamental em minhas mudanças, de personalidade e de conceitos, principalmente em relação às idéias e culturas dominantes. As leituras simbólicas, científicas ou técnicas dependem da interpretação de cada um. Só consegue tirar proveito das leituras aquele que separa o que é cultura dominante e o que é ideologia do que realmente precisa aprender. Existem leituras que mais parecem um trem que viaja atravessado nos trilhos. E o leitor não percebe isso. É assim que consigo analisar os livros que leio.

Os livros já lhe causaram grandes decepções ou alegrias?
Decepções jamais, porque não perco tempo bom com leituras ruins. Somente alegrias e muitas satisfações pessoais. Para mim, o livro é um tetraplégico que anda, um cego que vê, um surdo que ouve e um mudo que fala. Hoje reconheço que, se tive condições de escrever um livro, é porque li outros tantos. A maioria das compreensões que tenho das coisas da vida, do universo, de mim mesmo, de Deus e da liberdade é herança que recebi de bons livros, experiências pessoais e observações. Tudo o que penso a respeito das coisas, penso porque um dia li ou ouvi algo de outras pessoas. Só as selecionei de acordo com meus critérios, perguntei-me pelas razões porque gostei delas e as passei pelo crivo de meu próprio bom senso.

Que tipo de literatura ou de autor lhe parece absolutamente imprestável?
A literatura sensacionalista, que procura explorar o pavor humano; a literatura política ideológica clientelista e populista; a literatura determinista; a literatura dogmática científica, política ou religiosa, que não esclarece o que diz e mergulha o povo numa areia movediça; e a literatura de fofocas e bajuladora da sociedade. Quanto ao autor, todo aquele que obscurece e dificulta o entendimento da verdade; o medroso de suas próprias idéias; o sensacionalista; o covarde, que usa os outros para dizer o que pensa; e o escritor doutrinário, que procura conduzir o povo com uma moral de rebanho, fazendo-o andar cegamente atrás de um cego e que jura estar vendo a luz. O doutrinário fala e acredita que tudo é assim porque Deus quer. Esse determinismo é uma espécie de terrorismo psicológico que não agrega valor a nada, não consegue dar à luz boas idéias e não auxilia ninguém em sua caminhada. Quem segue a outrem nada encontra, até porque nada procura.

Que filósofo ou personagem literário mais o acompanha vida afora?
Não tenho nenhuma paixão por personagens ou filósofos, mas agradeço a todos que li e que contribuíram para meu processo evolutivo. Não me vejo preso a nenhum personagem ou filósofo e, ao mesmo tempo, não consigo esquecer as boas coisas que cada um me ensina. O homem jamais será livre enquanto depender de um personagem, um guru, um sábio ou um santo. Ele terá que se livrar dessa espécie de muleta intelectual se quiser viver em si, subsistir por si e parar de ficar nas pontas dos pés, tentando adivinhar o futuro. Somente depois de livre, o homem será capaz de não só viver, mas de existir. Quanto à liberdade, aquele que tem um bom dinheiro também está mais propenso a ela. A consciência livre é a chave para o conhecimento; depois da plenitude, ela reina absoluta e subexiste em si e por si.

Que livro os brasileiros deveriam ler urgentemente?
Título, não sugiro nenhum. Mas os brasileiros terão que ler algo que lhes dê bom senso, que os faça valorizar as riquezas que têm, que lhes tire as vendas dos olhos, que lhes deixe ver suas realidades, a fim de que consigam fazer melhores escolhas. Em todas as decisões, nossos problemas são sempre os mesmos: nossas escolhas. O homem da mente apaixonada acredita facilmente no determinismo, nas falsas noções e limitações da natureza humana, na linguagem, na comunicação duvidosa e no domínio cultural vigente.

Como formar leitores no Brasil?
Infelizmente, essa é a minha dúvida. Temos um sistema de governo assistencialista, e não é culpa do atual presidente. É a cultura que está nas veias da América Latina. Temos os esportes, que não necessitam de escolaridade e pagam milhões aos atletas; festas que param o país e oferecem fama; a contravenção que induz as pessoas ao erro e lhes paga um bom dinheiro; e um sistema que investe pesadamente em propagandas daquilo de que não precisamos. Tudo que é difícil o sistema nos apresenta como fácil e pré-determinado, para que sejamos tapeados e esqueçamos de ler. Tudo indica que o caminho deverá passar por uma educação bem sedimentada, pelo esclarecimento e pela compreensão da vida e das reais necessidades de cada um e a formação de uma nova consciência. A maioria dos homens corre atrás de dinheiro, facilidades e interesses individuais. Se esquecem, inclusive, deles próprios. Enquanto o povo continuar assistindo a reality shows e programas sensacionalistas, lendo revistas e jornais de fofoca e ideológicos, responsabilizando o patrão, o vizinho, a família e o governo pelas suas misérias materiais e intelectuais, e querendo receber para depois trabalhar, essa situação não mudará. Aí vai uma sugestão idealista: sou contrário ao assistencialismo e acredito que o governo deveria dar, ao povo mais necessitado, em vez do bolsa-família, o bolsa-leitura. E deveria incentivá-los a ler pelo menos dois livros por ano, para que estudem e façam novas opções em suas vidas. Sou contrário a dar o peixe às pessoas — e a vara também. Temos que falar para as pessoas que necessitam que no mato tem a vara e no rio tem o peixe que nos serve de alimento. E elas que se virem para se alimentar. E isso deveria se estender também a outros setores da sociedade que têm carência de leitura. Nos países pobres, a leitura não é considerada cultura, mas sim uma ameaça ao sistema. Principalmente a filosofia. Ela é apresentada aos leitores como subversão à ordem estabelecida, chata, intelectual demais e perigosa. A mídia é, também, o grande guia, responsável pelo desenvolvimento intelectual de uma nação, e a televisão, o seu maior condutor. O que forma um leitor é o incentivo em nossa própria casa, a mídia escrita, a falada — principalmente a televisionada — e a escola. A compreensão do que lemos nos traz a sabedoria. Mas, no entanto, a sabedoria só se aproxima de nós na medida em que nossas observações e experiências se refinam e se tornam razão.

Luís Henrique Pellanda

Nasceu em Curitiba (PR), em 1973. É escritor e jornalista, autor de diversos livros de contos e crônicas, como O macaco ornamental, Nós passaremos em branco, Asa de sereia, Detetive à deriva, A fada sem cabeça, Calma, estamos perdidos e Na barriga do lobo.

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