O poder das palavras e outros poderes

Nunca a palavra teve tanto peso, poder e importância na história como nos dias atuais
Ilustração: Thiago Lucas
01/06/2023

Neste tempo em que vivemos buscando a sobrevivência do planeta e que denominamos era da informação e do conhecimento, o poder das palavras se tornou onipresente e vital para as relações humanas. Nunca a palavra teve tanto peso e importância na história e, portanto, poder. Esta afirmação vale para os que buscam o entendimento e a democracia inclusiva e socialmente equânime, e para os que almejam a destruição do que melhor foi construído em séculos de busca por um padrão civilizatório minimamente humanizado.

Com a palavra e seu poder de convencimento na ponta dos dedos dos gadgets eletrônicos, redes sociais e toda sorte de comunicação que envolvem milhões de pessoas, vivemos permanentemente sob o poder da palavra, dos argumentos, das narrativas que moldam opiniões, decisões individuais e coletivas, traçando o rumo de questões decisivas para o bem-estar e para o desenvolvimento de nossa civilização. Ou para o seu inverso.

É importante partir dessa premissa ao analisar o planeta que notoriamente vive uma profunda crise econômica, social e de valores que ainda requer um entendimento mais avançado da filosofia política e das ciências sociais. O presente, no entanto, mostra um mundo em crise agônica do modelo que arquitetou, após a Segunda Guerra Mundial, uma nova sociedade que renasceria com a palavra diálogo ao projetar um centro político internacional, a ONU, com base na democracia e na liberdade, voltado para coibir conflitos e utilizar a palavra diplomática como instrumento para a paz.

Passados 78 anos, a cruenta realidade desta nova fase do capitalismo hegemônico de nossa era foi alimentada por sequências pouco edificantes para os propósitos almejados, como a guerra fria, as incontáveis guerras regionais e de invasão estrangeira, os genocídios, a persistência do xenofobismo, do racismo, das desigualdades estruturais entre as partes abastadas e as de extrema pobreza no planeta.

Atos de barbáries contínuas foram o pano de fundo para se criar um mundo de ocultamentos, de enganos, de falsas premissas ideológicas ou religiosas que, ao negarem até as conquistas científicas, voltaram a alimentar fanatismos e a persistente ignorância que submete grande parcela da população do globo. Neste mundo, o poder das palavras tem um papel ainda mais determinante e requer a atenção dos democratas.

Pressionados pela imediatez das respostas curtas e rápidas, o cidadão comum, e em particular aqueles que construíram aparatos críticos e são privilegiados pelo acesso e compreensão das diversas leituras, se veem hoje temerosos pelas mais assustadoras possibilidades de um futuro que possa resgatar com força global os horrores do passado, quando o pior dos seres humanos veio à tona na forma de ideologias fascistas e nazistas.

Afinal, como o não especialista em política poderia vislumbrar o renascimento dessas ideologias como possibilidade de governo, ainda mais apoiados por parcelas consideráveis da população em plena terceira década do século 21? Ou que seria possível pensar em teocracias mercenárias comandando países, ascendendo tão rapidamente em partes do ocidente com as igrejas de múltiplos credos impondo seu poder no Estado liberal e laico, contrapondo-se aos direitos civis e democráticos?

Resta-nos perguntar se a maioria compreende essa abundância de palavras que recebe e, compreendendo-as, exerce com consciência seu direito à crítica ou à adesão. Na verdade, essa última observação talvez condense a angústia que perpassa por muitos ativistas e formuladores de programas e ações de formação de leitores e leitoras que questionam a pertinência do trabalho atual e a viabilidade da continuidade dessa luta que, às vezes, parece perder fôlego frente às avalanches contrárias.

Por um lado, somos constantemente assaltados pelo temor cada vez maior de um mundo sendo construído no avesso do movimento virtuoso da palavra raciocinada pela política verdadeira, aquela que é destinada ao grande concerto da vida humana. Por outro, e se tudo é política, seja para construir ou para destruir, muitas vezes nos perdemos na busca pelo melhor entendimento da realidade desses tempos tão difíceis. Como analisar objetivamente a eficácia das políticas públicas e das ações em prol da formação de leitores e leitoras no conjunto dos programas de educação e cultura? Serão inúteis todos os esforços que fazemos em nossas comunidades e círculos sociais e afetivos?

Tema tratado profusa e diversamente por muitos ensaístas e pesquisadores, a eficácia da ação política emancipadora está chegando ao ativismo consciente de muitos que lutam por um Brasil de leitores na forma das observações e perguntas que têm hoje um potencial enorme de impulsionamento ou de paralisia. Seria primário reduzi-las às prosaicas “será que adianta o que fazemos?”; “você também tem dúvidas se nos escutam?”, “até quando haverá pessoas lutando por temas de política pública quando a maioria não se interessa?”, mas o fato de que elas existem e se intensificam são evidentes em boa parte das conversações do meio.

Por mais que me aborreça admitir, começo a perceber uma tendência nos grupos de debates virtuais, e entre muitas manifestações públicas de ativismos culturais, um certo aprofundamento do que talvez pudesse chamar de “euforia vã” pelos portais abertos no novo tempo político, com a extrema direita fascistoide apeada do poder federal, versus o desânimo cansado de quem luta cotidianamente há muitos anos fazendo um trabalho do qual não consegue vislumbrar resultados palpáveis de forma permanente ou estrutural. Um quadro de defesa pela sobrevivência, de compensação pelos últimos seis anos de pauperização do fomento à cultura, justificável e necessário, mas absolutamente insuficiente para as necessidades estruturais que ainda precisamos construir, se projeta como algo maior do que deveria ser.

Este quadro traz ainda maior responsabilidade aos atuais condutores das políticas de cultura e de educação neste governo de reconstrução no terceiro mandato do presidente Lula. Do meu ponto de vista, é inescapável que a política pública avance na edificação de programas estruturantes que, baseados em legislação existente, construam bases sólidas e permanentes para o desenvolvimento de projetos culturais e educacionais, particularmente de formação de leitores e leitoras, de forma durável e como política de Estado.

É possível fazer isso, buscar o consenso entre Estado e sociedade, com grande força motriz impulsionada pelas lideranças políticas ainda comprometidas com o desenvolvimento sustentável do país e que consigam deixar de lado seus corporativismos ou particularidades e pensem no conjunto dos interesses da maioria da população.

Modestamente, volto a sugerir: vamos investir prioritariamente na ação que tem maior potencial de agir com eficácia na democratização do acesso à leitura para todos e todas, no combate ao individualismo induzido, na retomada das atividades coletivas do pensamento e do lúdico, ou seja, vamos investir e consolidar definitiva e estruturalmente as bibliotecas de acesso público no Brasil? Se for tomada essa decisão política e obtido o consenso, o “como fazer” tem história, conceitos nacionais e internacionais e lideranças aptas para colocá-la em prática.

Instrumentos de acesso republicano à palavra, as bibliotecas vivas estão presentes de forma presencial e virtual nas sociedades mais consolidadas que souberam construir em seus países esses instrumentos imprescindíveis. Sonho com um Brasil que, finalmente, exerça uma política pública cultural e educacional que acompanhe seus cidadãos ao longo da vida onde bibliotecas abertas diuturnamente, acessíveis, atualizadas, conduzidas por profissionais motivados junto às comunidades de sujeitos, sejam peças de resistência democrática, contribuindo para formar consciências que preservem o que há de melhor nos seres humanos. É possível sonhar e é possível realizar esse sonho. Contra as barbáries que estarão sempre a postos para destruir nossas vidas.

José Castilho

É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

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