Contra a cultura da trapaça

Conceitos como democracia, autodeterminação dos povos, liberdade de expressão, precisam ser recuperados por ações culturais intensas, difundidas pelas artes e pelas literaturas
Ilustração: Mariana Tavares
01/04/2025

Finalizei minha coluna da edição de março deste Rascunho perguntando “até quando os democratas, socialistas e humanistas continuarão a pensar que a defesa desse patrimônio cultural e a formação de novos escritores/as e leitores/as é algo que pode ser adiado porque não é urgente?”.

Após a publicação, assisti a duas entrevistas impactantes que me trouxeram mais elementos para pensar a potência do trabalho cultural e educacional nesses tempos difíceis que vivemos. São, antes de tudo, fagulhas de esperanças.

Da primeira entrevista, tirei o título deste artigo, o da “cultura da trapaça”, de Alfred de Zayas, professor de direito na Escola de Diplomacia da ONU, entrevistado pelo professor de política internacional Gleen Diesen, da University of South Norway. Recomendo que a assistam na íntegra: https://www.youtube.com/watch?v=pLlucPSRBCc.

Autor de Building a just world order, Zayas reproduz neste livro as 25 teses que construiu quando atuou como “Especialista independente sobre a promoção de uma ordem internacional democrática e equitativa”, função criada pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU em 2011. Na longa entrevista, Zayas expõe com clareza e coragem as causas da guerra da Ucrânia e, ao expô-las, demonstra o terrível impasse do mundo contemporâneo sob a trágica e frágil hegemonia dos EUA sobre a Europa e o planeta. Me chamou a atenção o período que ele classifica como causas geradoras da guerra Ucrânia/Rússia. Para quem estudou ou viveu os anos 1990, não surpreende sua afirmação de que Bill Clinton destruiu um momento histórico da humanidade, que poderia ter transformado os imensos recursos utilizados para as guerras intermináveis que vivemos no planeta em um período de paz, quando a economia bélica poderia ser dirigida para uma economia de desenvolvimento sustentável. Ao optar em aumentar a presença da Otan nas fronteiras russas, quebrando acordo firmado, Clinton recusou a concordância da Rússia pelo desarmamento. Segundo Zayas, o fez com apoio dos governos europeus, comprovando mais uma vez que desde muito tempo (para não dizer sempre) somos governados por dirigentes desconectados das realidades, das pessoas e de seus territórios, mostrando apenas na aparência o título de democratas, praticando o inverso do que a cidadania e a política acordada na Carta das Nações Unidas estipulam.

Recordo que no auge da crise do neoliberalismo no final dos anos 1990, crise que abriu caminho para governos com perfil mais à esquerda serem eleitos em muitos países, inclusive no Brasil, também se forjaram diretrizes em organismos internacionais, como o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), que passaram a conceituar a ideia de desenvolvimento para além da economia, mas atrelada ao desenvolvimento humano, à sustentabilidade e à preservação do ecossistema. Foram dessas diretrizes que a Unesco/Cerlalc e a OEI propuseram em 2003 os movimentos de formação de leitores/as, a valorização da literatura e sua democratização na região ibero-americana.

No final dos 1990 e início dos 2000 nos rebelamos à imposição de um mundo dominado unilateralmente pelos EUA, com a consequente falência de teses como a de Francis Fukuyama e seu “fim da história”, como bem lembra Zayas em sua entrevista. Hoje, ao situar Ucrânia e Gaza na contemporaneidade, Zayas afirma que, apesar de vozes poderosas do mundo acadêmico e político falarem ao mundo sobre o que é preciso fazer para deter as guerras e construir a possibilidade de não nos autodestruir, ninguém os escuta, o que nos leva a “viver num mundo paralelo”.

O caminho que ele propõe para tentarmos reverter esse mundo paralelo da desinformação, da manipulação da verdade, da ação maléfica das mídias tradicionais e dos grandes magnatas me chamou a atenção. Sua esperança reside na difusão de mensagens para a maioria das populações de que elas estão sendo enganadas há décadas e todo um aparato mercantil e ideológico foi construído com esse propósito de vender uma narrativa enganosa. À alternativa de vivermos uma guerra contínua, ele propõe que construamos pontes que busquem o consenso para novos pactos civilizacionais baseados na autodeterminação dos povos onde todos sejam respeitados na sua diversidade.

E quais os veículos que farão essas pontes? Sua resposta é clara e só reafirma o que defendo aqui como um mantra: devemos praticar a cultura, a arte e a literatura como um caminho para o entendimento e a superação das violências na busca de uma ordem democrática e equânime.

Para chegar a essa conclusão que envolve um olhar sobre os poderes, ele não dispensa a literatura e lembra o diálogo de Alice com Humpty Dumpty:

Alice: “A questão é saber se o senhor pode fazer as palavras dizerem coisas diferentes?”. Humpty: “A questão é saber quem é que manda. É só isso”.

Trata-se de lutar para recuperarmos os significados de palavras capturadas pelo poder neoliberal empoderado na política unipolar norte-americana e na subordinação da Europa. Conceitos como democracia, autodeterminação dos povos, liberdade de expressão, precisam ser recuperados por ações culturais intensas, difundidas pelas artes e pelas literaturas. Além da política, robustecer ações culturais e educacionais é, na visão de Zayas, que compartilho, uma necessidade estratégica para um mundo que tem mais em comum do que diferenças irreconciliáveis.

A segunda entrevista veio ao encontro dessas reflexões e abriu ainda mais as possibilidades sobre a centralidade da cultura.

Promovida pelo Instituto Emília, como aula inaugural da pós-graduação “Leitura sem fronteira: mediação e formação de leitores”, assisti à palestra do poeta, escritor e professor Edimilson de Almeida Pereira, da UFJF/MG. A exposição sobre Ananse: Imaginário, história e literatura na Afrodiáspora ampliou nossas perspectivas e o próprio tema ao colocar questões que formulam alternativamente à lógica ocidental e dialogam, a meu ver, com as proposições de Zayas.

Citando aqui apenas os primeiros fundamentos das ideias expostas, que são as bases conceituais da ideia de “mediação”, ele as associa ao conceito do Multiculturalismo dos anos 1990, mesmo período referencial para Zayas quando mudanças de rumos nas políticas criaram a possibilidade de um mundo mais harmônico. Para Pereira, a ideia de mediação que busca o consenso entre múltiplas visões iniciada nos 1990 está perdida atualmente e urge resgatá-la. No mundo das desinformações e de profundas divergências aparentemente irreconciliáveis, e tendo por base uma fina análise das diásporas africanas passadas e contemporâneas, Pereira nos apresenta uma outra perspectiva que escapa ao pensamento ocidental hegemônico e que se afasta dos raciocínios que impõem uma divisão antagônica entre duas partes que se opõem. Negar a lógica dicotômica dos conquistadores abre a possibilidade de pensarmos a partir de uma “cultura global de errâncias (da Afrodiáspora)” e da necessária absorção de uma multiplicidade de culturas dos territórios. Esse movimento, presente no que chamamos das “margens” de todas as sociedades ocidentais, cria a capacidade de tecer o consenso do que se entende irreconciliável.

Para além dos confrontos, no esgotamento das forças, criam-se caminhos nas situações intermediárias. E é a literatura e o processo literário que podem exprimir o real e um outro real imaginado, projetado, desafiando o pensamento lógico provindo do positivismo europeu que aponta o que é bem e mal. Refletir sobre as possibilidades do imaginário, das literaturas que vão além do senso comum, torna-se tarefa fundamental nos dias de hoje.

Os universos dos dois entrevistados são fascinantes, ambos convergem para um mundo equânime e mais humano, ambos mostram a necessidade urgente da valorização das literaturas, das artes e das culturas como saídas possíveis para a crise que nos atormenta e pode nos levar a autodestruição. Mas, antes de tudo, elas são mensagens de real esperança porque aqui e alhures produzimos diariamente os consensos desejados. As lutas por uma sociedade eticamente responsável e justa estão vivas e inacabadas. Não é possível desistir.

José Castilho

É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

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