🔓 A leitura no feminino

Entre outros dados relevantes, a recente pesquisa “O Brasil que Lê” mostrou o engajamento maciço de mulheres à frente de projetos referenciais de leitura
Ilustração: Eduardo Mussi
01/04/2022

Formar leitores se conjuga no feminino, assim mostra a pesquisa O Brasil que Lê, recém-apresentada pelo Itaú Cultural e pelo iiLer/Cátedra Unesco de Leitura da PUC-Rio, destacando a liderança de mulheres em 74% dos projetos analisados.

A resiliência do ser humano a todas as atrocidades passadas e contemporâneas também encontra no feminino a força vital para manter-se em pé e resistir às múltiplas barbáries que a vida em sociedade impõe, principalmente nos territórios marcados pela iniquidade, pela desigualdade e pelas injustiças sociais que, estruturalmente, flagelam a maioria da população. Como é o caso do nosso país, por exemplo. Aqui, quando da implantação do programa Bolsa Família, que conseguiu debelar, ao menos temporariamente, uma das barbáries mais agudas, a fome secular de grande parte dos brasileiros, foi dada à mulher de cada família a responsabilidade de receber o auxílio e administrá-lo. Mais que um gesto simbólico da política pública, esta atribuição de responsabilidade à mulher expressou o reconhecimento àquelas que seguram a estrutura da sobrevivência física e espiritual dos filhos aos genitores incapacitados para o trabalho.

Refleti sobre este lugar tão evidente do feminino nas lutas sociais justamente no dia 8 de março, dia internacional de luta pela emancipação feminista, quando apresentávamos o primeiro dia do webinário de divulgação desta pesquisa que analisou profundamente os projetos de leitura e as pessoas que os criaram. Uma vez mais repetia-se um cenário que vivenciei durante toda a vida de profissional ligado ao livro e à leitura: ser o gênero minoritário em um tema e uma mesa com maioria de mulheres. Maioria na mesa, maioria absoluta na assistência e no chat do Youtube comentando as falas e os resultados. Maioria também nos exemplos dados quando citávamos uma ou outra ação referencial ou nos referíamos às formuladoras das bases teóricas que orientam conceitualmente os rumos e objetivos dos projetos compilados.

Ao escrever esta coluna, terminada a leitura dos dois volumes do sensível livro de Alonso Alvarez, Meia-noite na biblioteca, percebo que o autor soube extrair com zelo e maestria, em uma narrativa ficcional dirigida ao leitor juvenil de todas as idades, o quanto desta resiliência feminina é base e sustentáculo de projetos fundamentais para formar leitores e cidadania como são, por exemplo, as bibliotecas comunitárias. Neste livro, elas são narradas e sintetizadas a partir da inspiração proporcionada pela Biblioteca Caminhos da Leitura, instalada até há pouco no cemitério do bairro de Parelheiros, extrema região sul do município de São Paulo.

Nos dois volumes a força da resiliência tem nome de mulheres. A garota bibliotecária Aline navega por toda a estória como uma tecelã que tece todos os fios que encontra dispersos e fragmentados ao seu redor, ao mesmo tempo que conquista com sensualidade o namorado Ayo e ruboriza os quatro garotos que descobrem a biblioteca comunitária como um recanto de encantamento que lhes abre inúmeras janelas para o mundo. É ela também que toma as iniciativas, que não se detém frente ao isolamento da pandemia ao criar alternativas em seguir com seu trabalho de mediadora de leituras, é ela que organiza e equilibra afetos, interfere em jovens vidas que não haviam encontrado a riqueza das possibilidades e é ela que desfruta da singeleza profunda e bela da também mulher Dona Bintu, sua avó que fala e convive com as flores e plantas. Vem da velha anciã indígena, Tamikuã, o elogio à sabedoria mística dos nossos ancestrais e a atenção à vida na natureza que se harmoniza naquela biblioteca do cemitério entre livros de autores austeros, cerebrais, mas igualmente sensíveis ao humano. É no pranto da mãe do menino morto por balas perdidas, cena tão cruel do cotidiano de nossas metrópoles, que Alonso retrata a dor das inúmeras perdas de jovens mortos pela ausência de políticas de segurança pública que preservem a vida e repudiem a violência.

Não surpreende, para quem conhece a força feminina neste cenário, que apareça com toda clareza na pesquisa O Brasil que Lê, que 30% das ações de formação de leitores analisadas tenham sido articuladas com a influência da Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC), formada, por sua vez, por absoluta maioria de mulheres aguerridas que sabem o valor fundamental da conquista ao direito à leitura para todas e todos. São muitas as Marias, Cidas, Shirleys, Vals, Solanges, Bels, Angelas, muitas e muitas lideranças femininas e feministas que, como a ficcional Aline, estão há anos e cotidianamente na articulação de seus projetos, tão bem sintetizados na experiência real do Literasampa e da Biblioteca Caminhos da Leitura ao formularem durante a pandemia em Parelheiros os 4Ps: pão, proteção, poesia, plantio.

Como em Parelheiros, em inúmeras localidades desassistidas pelo poder público, formaram-se correntes de solidariedade lúcida e cidadã em torno das bibliotecas de acesso público que conseguiram se reinventar e atuar, mesmo a portas fechadas, para seguir formando leitores e auxiliar as pessoas de seu território a viverem na pandemia.

Certamente isto não seria possível se essas lideranças que formam leitores não estivessem preparadas conceitualmente e muito à frente dos atuais ocupantes do Ministério da Educação, mentes regressivas e perversas que confundem alfabetização com formação de leitores e estão pouco preocupados em formar cidadãos críticos e atuantes.

Foi com muita alegria que as pesquisadoras de O Brasil que Lê observaram os resultados de uma das perguntas do extenso questionário respondido pelos 382 projetos analisados. Questionados sobre quais conceitos de leitura trabalhavam em seus projetos, 88% responderam que a leitura é ampliação do universo cultural e fonte de conhecimento; 80% afirmaram que leitura é prazer e diversão; 71% entendem a leitura como formação do pensamento crítico e proporciona inserção na vida sociopolítica e, finalmente, entendem a leitura como recurso à expressão criadora e proporcionadora de acesso a diferentes linguagens.

A leitura como prática escolar e alfabetização, assim como habilidade técnica e instrumental foram, respectivamente, opções de 21% e 13% dos respondentes. Podemos deduzir com exatidão que o perfil da maioria dos projetos que formam leitores no país está totalmente alinhado com o que há de mais avançado conceitualmente e em plena sintonia com as políticas públicas que apontaram as diretrizes para tornar o Brasil um país leitor nos últimos 30 anos. Do Proler (Programa Nacional de Incentivo à Leitura) de 1992, ao PNLL (Plano Nacional do Livro e Leitura), de 2006, extraímos os conceitos hoje consagrados na Lei 13.696/2018 da PNLE — Política Nacional de Leitura e Escrita.

Vale recordar um dos conceitos expressos no PNLL que vai ao encontro desses dados virtuosos revelados pela pesquisa:

A concepção de leitura focalizada pelo Plano é aquela que ultrapassa o código da escrita alfabética e a mera capacidade de decifrar caracteres, percebendo-a como um processo complexo de compreensão e produção de sentidos, sujeitos a variáveis diversas, de ordens social, psicológica, fisiológica, linguística entre outras. Uma perspectiva mecanicista da leitura, que pretende reduzir o ato de ler a mera reprodução do que está no texto, tem sido um dos mais graves obstáculos ao desenvolvimento da leitura e da escrita. A leitura configura um ato criativo de construção dos sentidos, realizado pelos leitores a partir de um texto criado por outro(s) sujeito(s).

Do texto sensível de Meia-noite na biblioteca à atuação bem fundamentada dos projetos, segue o Brasil que lê, com a esperança ativa que exige compromisso dos poderes públicos na formação de leitores. Haverá o momento que esta força feminina irá parir um novo horizonte no direito à leitura para todos.

José Castilho

É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

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