Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda
Num momento em que temas como segregação, atrocidades de guerra, ditaduras políticas ou de opinião, desatenção à infância, censura, pareciam merecer uma visão consensual de repúdio, assiste-se ao recrudescimento de práticas perniciosas. De todos os lados, denúncias apontam o tratamento cruel e inumano dispensado às vítimas inevitáveis dos conflitos de variadas ordens. Em direção contrária ao bem-estar propiciado pelo avanço tecnológico, os problemas sociais acarretam um mal-estar intenso e contínuo, sofrido de forma direta por muitos, de forma indireta por outros tantos que têm consciência das situações incompatíveis com a dignidade humana.
Os meios de comunicação chamam, a todo momento, o indivíduo a tomar consciência dos dilemas e desafios contemporâneos e refletir sobre os movimentos possíveis para responder ao que se pode considerar como derrocada de princípios humanistas. A arte, por sua vez, continua um espaço privilegiado de referências que apontam as vias da solidariedade, da justiça, da denúncia e da confiança, como decisões necessárias às circunstâncias. Quando destinada à infância e juventude, sua função de sensibilização do indivíduo ganha especial relevância ao lidar com sujeitos em formação e com potência de transformação social.
A literatura para crianças e jovens tem produzido obras que, ao pôr em questão condutas excludentes, encorajam o exercício ético da humanidade, como Os invisíveis, em seus dois projetos autorais e editoriais, e Os pombos. Nesse movimento de pontuar outros lugares ocupados pela literatura, além da emoção estética e da reflexão ética, trazemos para nos acompanhar o pensamento teórico e analítico de Silviano Santiago em Uma literatura anfíbia, de O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural.
A perspectiva de Santiago, fundamentada em longa corrente da história da arte, considera ser função da literatura causar emoção estética e comoção. “… o livro de literatura existe ut delectet e ut moveat (para deleitar e comover)”. No entanto, no Brasil, diz o crítico, a literatura acaba por encarregar-se também de denunciar as condições sociais injustas de que padece o povo. E assim um terceiro princípio, “ut doceat (para ensinar)”, que deveria ser dispensado, acaba agregado ao exercício da literatura. Santiago reforça que o prazer estético e a comoção são gratuitos, e a nada devem servir senão a espelhar a própria condição humana. Contudo, quando essa condição se encontra ameaçada em sua essência, deleitar e comover necessitam do ato de ensinar, para não se pulverizar o sentido e a razão do humano. Dá-se a conhecer, então, a poética da dignidade humana, de que É isto um homem?, de Primo Levi, é exemplo cabal.
Tino Freitas é o criador do texto verbal, Renato Moriconi, o criador do texto visual de Os invisíveis, obra de 2013. Na edição de 2021, o texto visual é assinado por Odilon Moraes. O texto verbal continua o mesmo, mas com a mudança das ilustrações e do projeto gráfico as obras divergem em possibilidades de leitura. A narrativa explora um valor muito caro ao leitor infantil: a existência de um superpoder. Como o Super-Homem tem em seu olhar a potência dos raios X, o superpoder do protagonista — na representação de Moriconi — reside no grande raio de cor laranja que emana de seu olhar e permite atravessar a realidade ordinária e focalizar os invisíveis. São esses os que estão fora do raio de visão dos adultos, atentos a interesses e compromissos diversos da realidade considerada de menor valor, tomada como engrenagem, cuja única função é fazer rodar o motor social.
Garis, saltimbancos dos semáforos, músicos de rua são alguns dos invisíveis que o menino vê e cumprimenta pelo caminho, enquanto é puxado para seu destino pelos familiares, invariavelmente cegos para o que não esteja à sua frente. A sensação de não ser visto assalta o próprio garoto, de vez em quando. A mãe no computador, o pai em frente à televisão fazem dele também um ser fora de foco. O tempo passa, o menino cresce, cumprindo o trajeto biológico e social previsível, e esquece o superpoder que teve um dia.
Na segunda realização da obra, Odilon Moraes opta por denotar o superpoder do protagonista pela capa tão característica, e retira dos invisíveis a sua completude física: ausentes as cabeças, os rostos não se dão a ver. Só o menino os enxerga, e dá a maçã ao velho no banco, ajoelha-se para falar com a pessoa em situação de rua, vira-se para cumprimentar o porteiro da escola. Da mesma forma, porém, ele se sente invisível por parte de pai e mãe, certas vezes. Mas cresce, o menino, cumprindo o trajeto biológico e social previsível. O tempo passa, traz novos membros para a família, leva outros embora. “E o menino envelheceu esquecendo que um dia teve um superpoder.”
Em Os pombos, de Blandina Franco e José Carlos Lollo, as ilustrações, com traços e cores delicadas, mesclando desenho, pintura e colagem, contrastam com a realidade dura que apresentam. Enquanto o texto descreve a chegada das personagens, que vieram há muito tempo e se espalharam por todo lugar, causando indiferença ou medo aos moradores da cidade, a ilustração nos informa de que existe algo a mais na narrativa. Inicialmente retratados em seu formato animal, no passar das páginas os pombos são parcialmente antropomorfizados, recebendo alguns traços humanos. Ao serem expostos tipos e situações reconhecíveis por todo residente de grande centro urbano — os vendedores ambulantes, os pedintes nos sinais de trânsito, os catadores de lixo, as pessoas em situação de rua — os discursos habituais são suscitados e o narrador de terceira pessoa os transmite ao leitor:
As pessoas os culpam por toda a sujeira da cidade. Acham que eles são perigosos. Que podem atacar. Ou nos infectar com alguma doença. Dizem que eles reviram os lixos.
As ilustrações da arquitetura hostil que se espalha pelas cidades e o texto de quarta capa escrito pelo padre Júlio Lancellotti conectam a criança leitora e a realidade contemporânea, proporcionando diálogos difíceis mas necessários para a formação da nova geração. Tais imagens, e mesmo os discursos de empatia, tão comuns em nosso cotidiano, por vezes deixam de impactar as pessoas como deveriam, e nesta obra somos levados a encarar a realidade que tentamos ignorar no dia a dia. Encarar os “pombos” e dar-lhes rostos, para que possamos identificá-los como nossos iguais, como os autores nos desafiam ao final da leitura, é reflexão necessária e pungente.
As obras aqui discutidas são pródigas não por que apresentem soluções, mas por insistirem na questão sobre as pertinências do humano e a engenhosa fabricação do não humano, a partir de preconceitos e teorias engendradas a fim de justificar a exploração do igual. Os invisíveis, na sua segunda versão, arrisca não uma resposta, mas a condição irremediável do humano: a crença no futuro pela renovação da espécie. Esquecido do superpoder que um dia teve, o menino tornou-se velho. Invisível por sua vez, solitário num banco de parque, vê a bola rolar no chão. Atrás da bola, aparece uma criança capaz também de enxergar além do visível. Estende a bola para o velho, convida-o para brincar.