Bartolomeu e as professoras

Bartolomeu Campos de Queirós foi um autor que soube respeitar a inteligência de jovens leitores e o empenho daqueles que se dedicam a ensinar
Ilustração: Maíra Lacerda
01/02/2022

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

Para Bettina, Dayane, Eneide, Guilherme, Inez Helena, Maria Beatriz, Margareth, componentes do LeLiS/UFF, grupo parceiro na construção deste saber

 Escolhido o título, Vargas Llosa deu boa risada. Percebemos a inevitável associação, tentamos outra possibilidade para que as visitadoras, por nós admiradas, não se sentissem chamadas a esta cena. As opções foram descartadas, uma a uma. Queríamos falar de uma das mais felizes associações entre arte e educação neste país e desejávamos dois sujeitos para ela: Bartolomeu Campos de Queirós e as professoras da Educação Básica brasileira. Ele nos deixou há 10 anos, elas continuam aí, compromissadas, maltratadas, resilientes, determinadas.

Bartolomeu enfatizou, em encontros e entrevistas, não escrever para crianças. Escrevia, ponto. Em determinado pronunciamento, evocou a grande poeta Henriqueta Lisboa como uma de suas mentoras nesse campo. Se não há um mundo para adultos e outro para crianças, mas um único mundo que se apresenta à apreciação em diversas camadas de entendimento, por que etiquetá-lo em porções segundo idades? Por que continuar a serviço da hipocrisia e da cegueira, que insistem em vedar, sobretudo às crianças, aspectos com que nos defrontamos todos os dias, fora e dentro de nossas casas? Expor a infância a um universo protegido de conflitos e “fofo” é parte de um projeto para sequestro de autonomia, visando ao desenvolvimento de um ser sujeito a manipulações diversas.

O infantil é o tempo do devir, próprio em suas demandas, e com frequência subtraído dos sujeitos que o compõem, perspectiva bem assinalada pelo sociólogo Neil Postman. Em sua obra literária e em seu projeto político, Bartolomeu juntou-se a ele, enfatizando a força dessa idade. A visão crítica, a demanda por dignidade, o direito ao luto e às aspirações pessoais são itens que reclamam dos seres adultos o reconhecimento sem restrições. Por parte de pai, Mais com mais dá menos, Até passarinho passa e Ciganos são livros que podem sugerir a oportunidade de oferecer esses aspectos à infância e à juventude.

Com formação em arte-educação, Bartolomeu Campos de Queirós sabia da inestimável ponte entre esses dois alicerces na formação do indivíduo, a fim de que sejam gerados seres integralmente preparados para intervenção no mundo, atentos à expressão sensível em face da vida e aos ditames de uma inteligência humana. Considerado autor para crianças, falava com frequência às professoras em seminários de formação continuada, eventos de divulgação de livros e encontros promovidos por bibliotecas. Uma vez que constasse o nome dele na programação, o público era garantido.

Em sua tarefa pedagógica, aquelas professoras liam previamente as obras a serem levadas para a sala de aula. Tornavam-se, nesse ato, leitoras de Bartolomeu, tomando para si mesmas a leitura da qual deveriam ser, em princípio, apenas potenciais mediadoras. No entanto, como não há idade determinada para a fruição de um texto literário, ao ouvi-lo — nas palestras, mas também nas páginas dos livros — não o faziam na consideração de um proveito alheio, mas entregavam-se elas mesmas à inquietação e ao prazer do contato com “seu autor”. Tal comportamento era visível, e em nada impedia a boa condução do trabalho em sala mais tarde, muito pelo contrário. Identificadas com o universo do escritor, o contato com a pessoa e as palavras mansas atenuavam a dor de viver, comunicavam resiliência e novas construções possíveis a quem se reconhecia semelhante em um trajeto humano marcado pela perda e pela ressignificação. Por outro lado, ao conduzir suas intervenções, Bartolomeu não se descuidava da realidade social e política. É dele a autoria do Manifesto por um Brasil Literário, fundamentado no “direito de todos de também participarem da produção literária”, pois “a literatura nos acolhe sem ignorar nossa incompletude”.

A literatura nos acolhe, a professora acolhe a criança. Poucas serão sempre as palavras de aplauso para a maior parte dessas profissionais, devotadas, sacrificadas, competentes. Pouca será a gratidão em relação a elas, que acabam muitas vezes responsabilizadas pelos fracassos educacionais, em atitude perversa do senso comum, estimulada pelas cadeias de poder. Bartolomeu costumava destacar o empenho das professoras em seu aprimoramento e enfatizava o respeito comum pela inteligência infantil, sem temer os desafios da linguagem ou os arroubos do imaginário. Tais princípios poéticos, presentes desde O peixe e o pássaro e Mário, têm base na decomposição das palavras e do próprio real, para recomposições inusitadas, em articulações responsáveis pela fundação da linguagem, como se poderá ver, mais tarde, em As patas da vaca ou em Anacleto, obras de aparência simples, mas sofisticadas se observadas da perspectiva dos jogos de linguagem.

No importante artigo O leitor interditado, o professor Luiz Percival Leme Britto desmitifica uma frase tornada corriqueira por ignorância e oportunismo: “O professor não lê”. O professor e a professora leem as redações que corrigem, as provas de seus alunos, as circulares, portarias, leis, etc. Leem pouca literatura, talvez. São interditados neste direito, em função do trabalho dividido em várias escolas, das atividades administrativas indevidas e outras, que sobrecarregam esses profissionais, subtraindo tempo de leitura, estudo e lazer. Bartolomeu saberia disso, e o equilíbrio de seus textos, entre tempo e fôlego de leitura, terá sido propício às suas fiéis leitoras e ouvintes. Espalhada por vários títulos, a vertente autobiográfica de sua obra constrói-se em pequenos segmentos, que são verdadeiras estrofes narrativas. À maneira de Eduardo Galeano, e conferindo unidade temática a partir das linhas da própria vida ou de suas obsessões, ele leva a essas leitoras, habitualmente sequestradas em seu tempo de ler, uma das obras mais importantes da literatura brasileira contemporânea. Entre loquacidade e silêncio, Bartolomeu reverenciou a singularidade do imaginário humano, deixando prosa e poesia sempre à mão para traduzir mal-estar e potência para a transformação.

O autor continua presente, na reedição de sua obra e em homenagens como a que presta, dentre outras instituições, a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, com a nomeação dada a seu seminário anual, que alcançou em 2021 a 23a edição. As professoras continuam a ler Bartolomeu, a inscrever-se em cursos em que sua obra é tema, a espantar-se com a repercussão do trabalho diário, quando pais de crianças da Educação Infantil contam que os filhos voltaram para casa repetindo uma palavra que não entendiam bem: “O que você leu com eles ontem?”.

Como as visitadoras de Pantaleão, Anacleto, seu gato e seu pato irrompem, força erótica vital em meio ao trabalho e à vida.

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

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