Uma leitura de Frankenstein

O pensador francês Jean-Jacques Lecercle propõe uma leitura psicanalítica bastante controversa da obra de Mary Shelley, que diz respeito à fantasia
Ilustração: Dê Almeida
01/06/2021

Em Frankenstein, mito e filosofia, o pensador francês Jean-Jacques Lecercle analisa o célebre romance de Mary Shelley, publicado em 1818. O livro de Lecercle se divide em cinco partes: introdução (o mito), contradição narrativa (as origens filosóficas do mito), contradição história (Frankenstein e a conjuntura, uma metáfora política), contradição subjetiva (Frankenstein e a fantasia) e, por fim, um capítulo dedicado às adaptações do romance para o cinema.

No trecho sobre contradição subjetiva, o autor propõe um entendimento de mito partindo da premissa de que a conjuntura histórica (política) também é pessoal, e que essas duas instâncias estabelecem uma relação dicotômica. O mito seria, para ele, um encontro entre ambos: a familiarização da conjuntura histórica e a historização da conjuntura familiar. Então Lecercle propõe uma leitura psicanalítica bastante controversa da obra de Shelley para que se possa investigar o que em Frankenstein diz respeito à fantasia, no sentido freudiano do termo.

Para tanto, faz uma breve digressão sobre a fantasia como gênero literário e uma importante distinção entre o fantástico que encontramos em Frankenstein (que ele associa com o fantástico de Drácula) e o mundo de fantasia dos contos de fadas e dos livros de Tolkien. Diz que o leitor que procura por um universo fantástico no livro de Mary Shelley pode se decepcionar, pois fora o monstro, todo o entorno é bastante realista. Não se trata, portanto, de uma fantasia a serviço de multiplicar dragões, diz Lecercle. Nesse sentido, o livro de Shelley herdou características racionalistas do romance gótico oitocentista.

Lecercle observa que a estrutura narrativa de Frankenstein se assemelha à dinâmica das bonecas russas, com narrativas diversas. Temos a narrativa de Walton (o primeiro narrador), de Victor Frankenstein (o criador) e do próprio monstro (a criatura), uma contida dentro da outra em um jogo de encaixes que se pauta pelo nascimento e pela morte dos personagens. O autor analisa um a um — cada nascimento e cada morte narrados no livro — e percebe uma simetria. Se o ato de escrever inclui, ele próprio, o ato de criar (e tirar) vidas, como faz o próprio Victor ao criar o monstro, Lecercle constata que Mary Shelley não hesitou em exercê-lo: numerosos são as personagens criadas, o que seria banal. O que não é banal é o fato de que, com exceção de Walton, todas as outras personagens morrem. O autor percebe, então, que o centro desses encaixes é o nascimento e a morte de William, irmão mais novo de Victor.

Lecercle faz uso de uma análise biografista, o que é sempre delicado, utilizando dados da vida da autora que poderiam endossar a sua hipótese: William é não apenas o nome do pai de Mary Shelley, William Godwin, mas também teria sido o seu próprio nome se tivesse sido um menino (nas cartas trocadas durante a gestação entre seu pai e sua mãe, a escritora e filósofa feminista Mary Wollstonecraft, referiam-se ao bebê como “master William”). Mary Wollstonecraft morreu pouco tempo depois do nascimento de Mary Shelley. Anos mais tarde, o pai se casou novamente e deu ao filho, que nasceu desse novo casamento, o nome de William. A importância narrativa do nascimento e da morte de William, personagem do romance, segundo Lecercle, só encontraria equivalência na importância fantasmática que esse nome tinha para Mary Shelley a partir do conteúdo afetivo sobre o qual está fundada.

O autor observa que a simetria no livro encontra três exceções: a primeira considera natural — segundo Lecercle, diferente dos demais, Walton sobreviveu para que pudesse contar a história. A segunda exceção apontada por Lecercle é sobre o monstro, personagem que nasce tardiamente no livro, mas é o último a morrer. Ele sobrevive ao pai de Victor e também ao próprio Victor, seu criador. Para Lecercle, essa sequência de mortes daria ao romance um caráter edípico: por duas vezes, o filho causa a morte do pai. A terceira exceção é a mais marcante para o autor e se trata da morte da mãe de Victor, anterior a todas as outras personagens e antes mesmo do “tempo das mortes” no livro, ou seja, ocorre em meio a série de nascimentos. Há aqui uma ligação entre a sua morte e o nascimento do monstro, que está posta tanto no conteúdo do livro (ao perder a mãe, Victor jura que não deixará que outras pessoas morram, que acertará essa injustiça, e depois disso passa a se dedicar a invenções para recriar a vida) como também na forma, em termos de estrutura: a morte da mãe, o nascimento do monstro.

Além da estrutura de encaixe, Lecercle observa outros aspectos da narrativa que se assemelham ao processo da fantasia, como a inversão: o monstro se transforma de perseguido a perseguidor, a sua bondade se transforma em maldade. E também a simetria em espelho, o jogo de duplos: Victor e o monstro, mas também Victor e Walton (ambos interessados em romper barreiras do conhecimento de maneira extrema), por exemplo. No caso de Victor e o monstro, Lecercle vê duas possibilidades simultâneas que não se excluem: criador e criatura, Victor como pai do monstro; e o monstro como pai do filho, uma vez que representaria a proporção de um pai (o tamanho, a estatura) em relação a um filho (de um pai em relação à criança).

As falhas que Lecercle aponta na simetria da narrativa o levam a pensar em Édipo, mito em que a morte e o nascimento são pensados em conjunto e que inspirou uma das pedras fundamentais da psicanálise. Aqui, o autor se refere a uma fantasia inconsciente de natureza originária. Faz uma primeira aproximação que, para ele, seria de uma cena primitiva, analisando a estrutura do texto no trecho da criação do monstro, no qual acompanhamos o sonho de Victor: o beijo na amada, Elizabeth, que se transforma em sua própria mãe morta graças ao mecanismo de deslocamento próprio dos sonhos (que Freud só descreveu mais de 80 anos depois, ao publicar A interpretação dos sonhos). Victor desperta aterrorizado e dá de cara com o monstro que havia criado naquela mesma noite.

O trecho espelha, de maneira invertida, a cena da criação: poucas horas antes, a criatura estava deitada e Victor, em pé, quando os olhos do monstro se abrem pela primeira vez (o monstro é visto, de maneira passiva). Agora, é Victor quem está deitado e é observado pelo monstro (o monstro vê, de maneira ativa). O olhar (ver e ser visto) desempenha nessa cena um papel essencial. O que causa tanto horror a Victor é, antes, ver o monstro que criou ganhar vida, e depois, principalmente, o fato de ser visto pelo monstro, uma relação de olhar simétrica. Para Lecercle, é como a inversão de um fantasma (no sentido psicanalítico do termo), uma relação de permutação linguística, uma vez que se observa igualmente na linguagem, emparelhando as ações de Victor com as do monstro na escrita. As mesmas palavras utilizadas para narrar o despertar de um (o monstro que ganha vida) são utilizadas para narrar o despertador do outro (Victor acordando após o sonho). Se o objetivo da fantasia é criar um sujeito, Lecercle demonstra que foi bem-sucedida ao mostrar que de it, poucas linhas depois, o monstro passa a receber o pronome he.

Para Lecercle, a contradição subjetiva que nomeia o seu texto não está tanto na contradição psíquica (amar e odiar o pai ao mesmo tempo — aqui, referindo-se tanto ao monstro e Victor como à própria Mary Shelley e seu pai), mas nessa circulação de afeto que transita entre o histórico e o pessoal, entre o real e o imaginário, entre o consciente e o inconsciente. O autor define a fantasia como esse estado intermediário ambivalente: ao mesmo tempo, consciente e inconsciente, coletivo e individual (como Édipo). Aí estaria a especificidade do texto, e também a condição para que o texto seja alçado a mito e perdure em outras conjunturas.

Fabiane Secches

É psicanalista, crítica literária e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo. Autora de Elena Ferrante, uma longa experiência de ausência (2020).

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