João do Rio foi um grande tradutor do espírito das ruas da então capital do Brasil, entre o final do século 19 e o começo do 20. Em suas crônicas sobre os mais variados aspectos do cotidiano da época, em suas andanças como jornalista pelas vias vivas daquela cidade, João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto teceu interessantes considerações, também, sobre a linguagem e a literatura.
Em seu A alma encantadora das ruas, Paulo Barreto anotou: “A rua é a transformadora das línguas. Os Cândido de Figueiredo do universo estafam-se em juntar regrinhas para enclausurar expressões; os prosadores bradam contra os Cândido. A rua continua, matando substantivos, transformando a significação dos termos, impondo aos dicionários as palavras que inventa, criando o calão que é o patrimônio clássico dos léxicons futuros”.
Pelas ruas, os sentidos deslizam ágeis; deslizam ágeis pelo texto também, mas se enroscam na rede do papel, cristalizando-se lentamente, em direção a uma estabilidade passageira. O papel retém seletivamente, filtra os significados que esvoaçam livres na mente coletiva. A rua, não. A rua tudo permite, inclusive as distorções gramaticais mais absurdas, os neologismos mais espúrios, os desvios semânticos mais grotescos, desde que a comunicação flua, ainda que sob fragores e seguindo o fio das interpretações descabeladas e até da incompreensão recíproca.
O autor do original, do alto do pedestal da criação, se estafa em criar expressões que instiguem impressões novas, sublimes ou torpes, mas que impactem pelo ineditismo da conjunção. Esforça-se por cristalizar sentidos que, logo ali na esquina, tenderão certamente à dispersão e a novas criações.
O tradutor desliza entre a rua (a linguagem solta, inventiva, livre das amarras dos puristas; a linguagem das múltiplas interpretações) e a escritura literária original (filtrada, decantada e cristalizada no papel). Na mente do tradutor, espelha-se a mente caótica das ruas — as inúmeras possibilidades pululam, alheias a qualquer hierarquia. No texto do tradutor, a escritura escorre pastosa, derrapando já na teia do papel rumo a uma nova e provisória solidificação.
O tradutor leva a vivacidade da rua para dentro do original; a rua com suas novidades, sua gíria, seu arsenal sempre carregado de neologismos, suas rebeldes alternativas gramaticais, sempre arredias às normas da época. Com isso, dá um sopro de vida no texto velho e gasto do original, muitas vezes ambientado em outras ruas distantes, de distantes sabores e culturas.
O tradutor transfere a energia dessas ruas distantes para as nossas, mais próximas, num processo que digere velhos sentidos para sintetizar seus sucessores. Processo que, carregado de cores, mescla as distintas forças vivas das ruas e de seus motores, sejam poetas ou prosadores, sejam mulheres e homens comuns.
As ruas, conforme João do Rio, vão transformando gradualmente o idioma, no início ditando a transgressão das normas; depois, fixando a nova norma que será referendada pelos dicionários.
A tradução, como as ruas, atua também como elemento transgressor, rompendo barreiras linguísticas, normas gramaticais e padrões lexicais. Mas, transgredindo, projeta a futura conciliação. Fixa, ante o original, novo parâmetro literário na língua de chegada — parâmetro que passará em breve a ser usado não apenas pelos novos tradutores, mas também, e principalmente, pelos novos autores.
É essa conciliação que anseia toda tradução, com fervor de oração: ver o original ainda aceso em outra esfera, ligando tempos, ligando mundos, ligando línguas; para que lá embaixo, nas ruas de João do Rio, os homens vivam “no mistério das palavras conciliadoras”.