Tudo o que temos

O passado não me empurra para trás, mas para frente
Ilustração: Bruno Schier
31/03/2018

Preso ao Teatro completo de Tchekhov, que leio avidamente na edição espanhola da Editorial Losada, de Buenos Aires, experimento um salto de mais de um século para trás. Como sempre ocorre quando levamos o passado a sério, porém, ele não me empurra para trás, mas para frente. Entre todas as peças do escritor russo, uma me interessa de maneira especial: O jardim das cerejeiras, que assisti, no fim dos anos 1980, no Rio de Janeiro, e provavelmente no Teatro dos Quatro, estrelada por Nathalia Timberg. Última peça de Anton Tchekhov, O jardim das cerejeiras estreou em 1904, dirigida pelo mítico Stanislavski. Mesmo ano em que Tchekhov faleceu. O dramaturgo russo acreditava ter escrito uma comédia, mas, já em sua montagem inaugural, Stanislavski a encenou como uma tragédia. A tragédia que, de fato, é. Já não me lembro com que espírito se montou o espetáculo a que, há trinta anos, assisti no Rio; mas, para mim, foi como uma tragédia que a peça ficou.

A grande literatura sempre provoca escândalo. Por que escândalo? Porque, com suas palavras de aço, ela rasga a cortina de normalidade que envolve o real. Ela o desmascara. Ela o desnuda. Assim é com O jardim das cerejeiras, a história de Liubov Raniévskaia, ou simplesmente Liuba, uma proprietária de terras que resiste, até onde pode, agarrada a seu passado. Liuba está na falência; precisou vender a casa em que vive, uma herança de família. O mais importante, contudo, não é a casa, mas o jardim de cerejeiras que seus ancestrais cultivaram durante anos. O tema de Tchekhov é, portanto, a resistência, com todas as contradições e também as dores que ela envolve.

“Eu nasci aqui, aqui viveram meu pai e minha mãe, meu avô, eu amo essa casa, sem o jardim das cerejeiras não entendo minha vida”, Liuba resume sua situação em dado momento do Ato III. Prossegue: “E se é tão necessário vendê-lo, pois que me vendam a mim também junto com ele”. Uma visão simplista dirá que Liuba é excessivamente apegada ao passado e que não tem coragem de enfrentar o presente. Hoje também está na moda referir-se ao passado com desprezo e até desdém: a história morreu, o socialismo morreu, o futuro morreu pois já chegou, se diz com tranquila desfaçatez. Contra o “realismo” dos pragmáticos, Liuba resiste. Ela sabe que é um pedaço de si que negocia; é um pouco de sua alma que deixa para trás.

Mas o mercador Ermolái Lopajin, que está comprando a casa e seu jardim, também apresenta suas razões, a princípio muito comoventes. “Comprei a propriedade onde meu avô e meu pai foram escravos, onde não os deixavam entrar nem sequer na cozinha.” Razões, contudo, que escondem outros interesses, bem mais mundanos: ele compra a propriedade não tanto por motivos sentimentais, mas porque, depois de derrubá-la e ao jardim, planeja construir no terreno um condomínio de dashas, e com isso enriquecer. “Venham todos ver como Iermolái Lopajin derrubará a machadadas o jardim de cerejeiras, como as árvores cairão no solo!”, ele brada. Mais uma vez, Tchekhov descreve, com fúria, o modo como o progresso (e a especulação) tratam a realidade: como simples objeto. O modo repulsivo como a vida é negociada e alienada, como se fosse só um pedaço de carne.

Ania, filha de Liuba, tenta olhar para frente e, assim, consolar a mãe. “Vem comigo, vem, querida, vamo-nos daqui! Plantaremos outro jardim, mais esplêndido que este, você verá, você compreenderá, e a alegria, uma alegria silenciosa e profunda, descerá sobre a tua alma”, traduzo precariamente. Mas nenhuma promessa de futuro grandioso, nenhuma utopia, substituem o presente. O real é insubstituível. É único. Toda troca é, um pouco, uma contrafação. A Lopajin, Ania pede que não comece a derrubar o jardim antes que sua mãe, Liuba, possa partir. Que a poupe de ver o pior. A partida é, porém, difícil: Liuba sabe bem que não abandona apenas uma casa, ou um jardim, mas todo um passado. Que aquelas paredes estão habitadas por fantasmas e por lembranças que valem muito mais que um pedaço de terra. “Bem, é hora de partir”, procura encorajá-la o estudante Trofímov, já em meio ao ato final. Mas a resistente Liuba, mesmo derrotada, mesmo com a casa perdida, não desiste de seu desejo: “Me sentarei ainda um minuto. É como se antes nunca tivesse visto as paredes dessa casa, os tetos, e agora eu os olho com avidez, com tão terno amor”.

Quantas vezes não conseguimos realmente ver aquilo que temos? Quantas vezes, tragados pela rotina, pelo hábito, pela indiferença, menosprezamos e nos cegamos para o que temos de mais precioso? Também hoje nos lamentamos, disso e daquilo, desta ou daquela perda; estamos cheios de razão, somos sinceros em nossos desabafos, mas isso não basta. Não será também o consolo de um futuro imaginário, ou de uma utopia, que nos salvará. Como Liuba, precisamos encarar o presente, com tudo o que ele inclui; com o que ele tem de melhor, mas também de pior. Só o apego ao presente irá nos mover. “A vida passou e me parece não a ter vivido”, Liuba se lamenta no fecho da peça. E depois, ainda agarrada ao que lhe resta, diz: “Vou me recostar. Já não tenho forças, não sobrou nada, nada…”. Ao fundo se ouvem as batidas de um martelo, que golpeia uma árvore. Cai o pano.

As reflexões de Liuba sobre o presente — seu presente, mas também o nosso presente — me ajudam a pensar em nossa apatia contemporânea. Tempos insensíveis e mornos: eis o que hoje vivemos. Talvez a apatia seja isso: não conseguir realmente ver aquilo que nos sucede. Aquilo que temos e aquilo que somos. Colocar mantos, véus, cortinas; encobrir as coisas difíceis com uma falsa tranquilidade, ou empurrá-las para um futuro longínquo quando, só então, e finalmente, tudo se decidirá. Mais de meio século depois, ao escrever seu perturbador Água viva, Clarice Lispector definiu, talvez, o que Tchekhov quis dizer: a necessidade de buscar o que ela chamou de o “instante já”. Não o imediatismo cego, mas, ao contrário, a própria vida. Não o consolo rápido, mas, em vez disso, suportar o que se é e o que se vive. E, sobretudo, fazer alguma coisa disso, desse presente — por pior que ele seja. Resolver as coisas aqui, fazer o melhor possível com o que temos; para que amanhã nossos netos possam, pelo menos, dizer: “Eles tentaram”.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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