Poesia e corpo

Uma áspera barreira separa corpo e poesia
Ilustração: FP Rodrigues
31/12/2016

A leitura de um livro de poemas, um belo livro de poemas — Corpo de festim, de Alexandre Guarnieri, Confraria do Vento — me leva a refletir sobre uma conexão impensável: o vínculo entre literatura e corpo. Costumamos achar que os dois jamais se misturam. Contudo, alguns sinais perfuram essa opacidade mútua. Desde menino, desde minhas primeiras leituras ainda de calças curtas, sofri na carne — a palavra é exatamente essa — os efeitos dos livros que li. A leitura do Robinson Crusoe, de Defoe, aos oito anos de idade, leitura e releitura obsessivas, me deixou paralisado em uma rede, na varanda do sítio de meus pais, em Teresópolis. “O que você tanto faz aí deitado?”, meu pai reclamava. “Larga esse livro e vai aproveitar o sol.” Mas algo me prendia: eu não conseguia parar de ler.

Um dia, impressionado, ele me levou ao médico da família, que tinha um consultório na Rua Graça Aranha, no centro do Rio. Depois de me examinar com cuidado, o doutor diagnosticou: “Esse menino não tem nada, só precisa de ar puro”. A leitura, porém, já tinha se tornado um veneno, estava infiltrada em meu sangue. Pouco depois, enquanto eu lia A peste, de Camus, cultivava a sensação de que todo o meu corpo era invadido por uma epidemia invisível que, sim, podia até me destruir. Meses mais tarde, ou talvez um ou dois anos, e ainda com mais espanto, li A metamorfose, de Kafka — e o livro me convenceu de que, sim, imitando o que aconteceu com Gregor Samsa, as dores mentais podem se materializar na anatomia, agitá-la e alterá-la.

O sintoma mais grave foi produzido, aos 18 para 19 anos, com a leitura de A paixão segundo GH, de Clarice. Simplesmente caí doente. Uma febre enigmática, sem nenhum outro sintoma, só fazia subir e subir. Não conseguia sair da cama. Até que certo doutor Wangler, médico de minha avó Iracema, foi chamado para me examinar. Examinou-me com lentidão e em absoluto silêncio. No fim, virou-se para minha avó e declarou: “Não é nada não. Esse rapaz sofre só de uma paixonite”. Em um exercício exemplar de crítica literária, o doutor Wangler conseguiu ler GH em meu corpo. O romance estava instalado dentro de mim e, radical e belo, me corroia.

Dependendo de como lemos o corpo, ele se parece com um livro. Através de cada órgão, cada músculo, cada fluido, podemos alcançar não a alma, ou o espírito, ou qualquer outra transcendência, mas alguma coisa que, sendo corpo ainda, o ultrapassa e legitima.

Essa experiência me convenceu de vez de que, apesar de impenetráveis, literatura e corpo mantêm um elo secreto muito mais potente do que em geral consideramos. De que ler é sim, concretamente, perigoso. Agora é a vez de Alexandre Guarnieri tentar ler poesia na anatomia. Tenta e consegue. Seu livro é surpreendente. O baço, os rins, a lágrima, o sêmen, a urina, a pele, o crânio tornam-se matéria nobre de poesia. Sim, há poesia no corpo — tudo depende do modo como nós o lemos.

É espantoso. Dependendo de como lemos o corpo, ele se parece com um livro. Através de cada órgão, cada músculo, cada fluido, podemos alcançar não a alma, ou o espírito, ou qualquer outra transcendência, mas alguma coisa que, sendo corpo ainda, o ultrapassa e legitima. Talvez um sentido — que se expressa em coisas banais como um tremor, uma respiração, um desmaio. Talvez uma simples direção. Escreve Alexandre: “a carne, que cada corte desonra,/ cintila nesse mal que tarda a sarar”. Mais à frente, escrevendo sobre o sangue, o poeta nos diz: “no livro corporal (sob o martírio/ de ser escrito) o sal que cada talho; encontra, arde, demora a curar”. Escrita e corpo se misturam, se confundem, se alimentam. Aqui cabe não esquecer do mais evidente: que é com o corpo — especialmente com as mãos trêmulas e a mente agitada — que todos escrevemos.

Há, no corpo, uma alternância entre o seco e o molhado. Entre o morto e o vivo. É nela que a vida palpita e que uma biografia, enfim, toma corpo, podendo ou não, depois, ser efetivamente escrita. A poesia de Alexandre é seca, entrecortada, minuciosa. Ele escreve com o mesmo fervor dos anatomistas. Mas não se trata apenas de descrever o corpo. Mais que isso: escrevendo-o, o poeta lhe sopra uma segunda vida. Ainda e sempre será apenas do corpo que se trata, mas não poderemos observá-lo mais com a mesma apatia. Movimentos que não controlamos movem esse corpo e o dirigem. No poema dedicado ao pulmão esquerdo, ele escreve: “movimentam-se, involuntários, todos os seus sistemas”. O corpo não sabe o que faz e, no entanto, continua a fazer. Neste “como fazer” reside sua poesia. Nessa agitação involuntária — semelhante aos movimentos do coração, ou dos intestinos — uma vida lateja.

Ainda agora soube que um grande amigo, que é também um jovem escritor, está com um câncer. Nele, a quimioterapia tenta conter aquilo que o corpo, autônomo e indiferente, insiste em produzir. Essa autonomia do corpo se parece, em muito, com a independência da escrita, que está sempre a nos escapulir. Não é por outro motivo que, na leitura literária, esbarramos, tropeçamos e trememos. Uma autonomia feita de vazios. Alexandre assim a descreve: “cada poro/ um escoadouro/ pelo qual/ cada glândula/ sudorípara/ res pira”.

Tratando, mais à frente, do mecanismo dos fluidos, ele diz: “da língua aos intestinos/ há um caminho/ como o rio nilo/ lindo o alto/ ao baixo Egito”. Microorganismos quebram as moléculas, produzindo furos. Reentrâncias, margens, mucosas em que o corpo deságua. No corpo há movimento e, portanto, há narrativa. Em um corpo vivo, algo se produz e nisso, se soubermos ver, há também alguma poesia. Alexandre sabe e nela remexe com a pose de um especialista.

Não podemos negar ainda, o poeta nos adverte, “que haja, em potência, o erro/ (é mais fácil zelar pela cabeça)/ ou algum tropeço preso a cada membro”. Também no corpo a narrativa (poética) é instável e repleta de rupturas. Também nele algo, sem sucesso, tenta se manter em equilíbrio. Talvez no corpo o equilíbrio seja exatamente essa ausência de equilíbrio. A norma seja a quebra da norma. Minuciosa e “científica”, a poesia de Alexandre nos dá acesso a um cenário atravancado de surpresas. A uma máquina que só funciona porque é estranha e escorregadia.

A poesia não dá conta do corpo. Também o corpo não serve como espelho para o mundo — como pretendem os biologistas. Uma áspera barreira separa corpo e poesia. É sobre esse tenso fio que Alexandre Guarnieri escreve. É equilibrando-se sobre ele que (sabendo que nunca sairemos ilesos) todos nós escrevemos e lemos.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho