Overdose de realidade

O assassinato diário de meninos e meninas, arrancados de seu cotidiano pelas unhas da morte, é hoje a síntese do país medonho em que vivemos
Ilustração: Paula Calleja
02/04/2021

Em sua apresentação de Estão matando os meninos, perturbador livro de contos que está lançando pela Iluminuras, Raimundo Carrero, sem poupar palavras, sem disfarces inúteis, nos diz: “Possuído de uma dor crescente e cada vez mais dilacerante, resolvi escrever essas histórias que, em sua maioria, me chegam através do choro de pais e parentes, debruçados sobre corpos dilacerados”. A dor do real, mais do que qualquer “projeto literário”, o levou a escrever.

A pandemia da Covid-19, que nos afasta do mundo, no caso de Carrero produz um segundo efeito, contrário. Isolado em seu apartamento no bairro do Rosarinho, no Recife, logo que acorda ele sintoniza a TV nos canais de notícias. Abnegado, passa seus dias exposto aos murros desferidos pelos telejornais. Não recua, não diminui o volume, não desliga a televisão. Só na hora de dormir. É ali, diante dos fatos medonhos, que Raimundo Carrero escreve. Foi ali que escreveu Estão matando os meninos, um livro impregnado pelo real.

Com essa postura, ele desmente a figura do escritor “puro” que, enquanto o mundo se agita e se consome, protege-se trancado em uma Torre de Marfim. Sim, as circunstâncias o impedem de sair às ruas e de respirar a realidade. Mas, pela janela escandalosa da TV, a realidade invade seu cotidiano e se impregna em seus escritos. Brutalmente vivo, o novo livro de Carrero — o mais forte que já escreveu — pulsa nas mãos do leitor.

“Não posso silenciar diante deste revoltante genocídio que se abate sobre o Brasil”, ele diz. O assassinato diário de meninos e meninas, arrancados de seu cotidiano pelas unhas da morte, é hoje a síntese do país medonho em que vivemos. Matar crianças nos leva à esfera do insuportável. Contudo, esses crimes desfilam, diariamente, na televisão, entre jogos de futebol, programas humorísticos e anúncios de automóveis.

Não é só Carrero quem experimenta esse sentimento de estupor, de invasão, até de possessão pelo real. Com sua fidelidade feroz aos fatos, de peito aberto, ele reproduz em seus escritos uma experiência que todos hoje, de alguma forma, vivemos. Estamos todos contaminados pelo real. Já não existem paliativos, atenuantes, véus que nos protejam. O vírus mortal da realidade devasta nossa vida. Basta sair da cama pela manhã e ele inicia seu bombardeio.

Não é preciso que seja pela TV — pode ser pela internet, pelos jornais impressos, pelas mensagens dos amigos, pelo falatório das ruas. Parece não haver mais lugar para o sonho e para a solidão. Para o segredo. Como um vírus — mais um vírus funesto a nos atormentar — a overdose de realidade corrompe e degrada a vida. A realidade se torna nosso castigo. Intoxicados pelos fatos, já não conseguimos respirar.

Com sua escrita ardente, Raimundo Carrero transforma a tragédia contemporânea em ficção. Ele captura com as palavras uma realidade fora de controle. Esse desassossego me faz lembrar de Santo Ambrósio que, no século quarto, foi o primeiro homem no Ocidente a ler em voz baixa. A ler em silêncio. A partir dele, a leitura se tornou silenciosa. Ainda era possível cultivar a introspecção. Há uma bela reflexão sobra a arte da leitura em Santo Ambrósio em um ensaio do argentino Juan José Saer. A narração-objeto, ele se chama. Eu o li na edição espanhola da Seix-Barral.

Saer me ajuda a pensar essa invasão desastrosa do real em nossas mentes. Picasso disse certa vez: “Estou preocupado com a verossimilhança, uma verossimilhança mais profunda, que é mais real do que a realidade”. Por estranho que pareça, o resultado dessa busca é algo que não se limita a reproduzir o real, mas que o ultrapassa. Que o atravessa — com a violência de uma faca. Também nos relatos de Carrero, o real não só se estampa, mas sangra.

Só a ficção nos permite ultrapassar a simulação de realidade que a TV e a internet nos oferecem. Só ela nos permite parar, olhar de verdade e enfrentar.

Diz Saer que as grandes ficções não se limitam a refletir ou imitar o mundo, elas “o contém”. O mundo é o mesmo, é aquele que todos vemos na TV. O que se altera é o olhar. O realismo que o interessa — do mesmo modo que aquele que interessou a Pablo Picasso — é um realismo que desvenda o que, sob as luzes da realidade, permanece escondido.

Uma coisa é assistir na televisão a uma reportagem sobre meninos assassinados. Apesar do horror que carrega, ela parecerá sempre uma repetição, sempre a mesma realidade que se desdobra. Tudo muda quando a literatura entra em cena. Mesmo debruçada sobre o real, ainda que arrastada por ele, a ficção escancara e joga sobre nós tudo aquilo pelo qual, na TV, apenas “passamos” — como quem folheia uma revista, ou gira a tela do Instagram.

Na definição de Saer: é nesse atravessamento que a literatura produz “o sabor do irrepetível e do único — isto é, do real”. Em uma premonição, alerta-nos Juan José Saer — que faleceu em 2005, em Paris, aos 68 anos: “hoje temos que viver presos à realidade material bruta e temos que reconhecer que fomos simbolicamente derrotados”. Só a ficção nos permite ultrapassar a simulação de realidade que a TV e a internet nos oferecem. Só ela nos permite parar, olhar de verdade e enfrentar.

A televisão — o jornalismo em geral — “edita” seus produtos. Isto é: ela os recorta e os seleciona. No turbilhão de suas anotações, também o escritor escolhe caminhos e faz opções. Contudo, ao contrário do que ocorre no jornalismo, o ficcionista não é obrigado a saber aonde quer chegar. Um escritor trabalha sem objetivos e sem destino. “Essa indeterminação de sentido se mostra muito mais verossímil do que o discurso pretensamente racional”, alerta Saer.

Um escritor não precisa “ter razão”. Deve, ao contrário, permanecer fora do domínio da razão, ou se limitará a escrever o que outros já escreveram. Não deve também se submeter à tirania dos gêneros. Lembra Saer que o relato de ficção “não é só um objeto verbal, mas também um objeto mental”. Fechado o livro, o relato continua a arder na mente do leitor. É ali, no espírito do indivíduo solitário, que a realidade ferve. O escritor não é um repórter de guerra, mas alguém que, depois de sobreviver ao campo de batalha, sangrando, relata o que viveu. Já não são apenas palavras. É um pedaço do real que ele carrega dentro de si.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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