Mundo que se desmancha

Ernesto Sabato é um pessimista, da mesma linhagem de E. M. Cioran
Ilustração: Isadora Machado
31/05/2018

Releio, mais uma vez, Antes do fim, o livro de despedida de Ernesto Sabato. Sozinho, já sem a mulher, Matilde, e agora sem o filho querido, Jorge Federico, Sabato é um homem sem sombra, que se ampara apenas na invisível Elvira, sua governanta. À beira dos 90 anos, leva uma rotina cheia de restrições. Já não consegue ler, escreve com dificuldades, a vida lhe escapa. Preso ainda a breves fachos de luz, refugia-se na pintura — uma paixão antiga, que realiza tardiamente, mas com grande fervor. Última janela para um mundo que se desmancha. Como já não pode viajar, restringe-se ao espaço sagrado dos objetos antigos, das fotografias amareladas, os restos de uma existência. É um cão, que se satisfaz, humilde, com seu punhado de ossos.

E foi assim, arrastando um longo passado, longa cauda de feridas e glórias, com a certeza serena de que lhe faltam apenas poucos passos pela frente, que Sabato escreveu esse livro triste, que em nada deve às suas melhores narrativas, como O túnel. Grandeza aqui de outro tom, confessional, com a franqueza que os velhos se permitem para se vingar do que lhes foi subtraído. E mais que isso: com uma visão cósmica da existência, alçado a uma espécie de limbo metafísico, que fica além das crenças e das religiões, um firmamento sem deus no qual só os homens serenos e apaziguados conseguem tocar. “Não detesto os homens, tenho medo deles”, Sabato diz, citando Strindberg, o dramaturgo sueco do século 19. O que viveu, de fato, justifica essa afirmação. Sufocante muitas vezes, Antes do fim é um livro comovente. Sabato está triste, muito triste, não só com a proximidade da morte, que ele sente como logo ali, mas sobretudo com as restrições físicas que o impedem de viver plenamente os dias que lhe restam, e mais ainda com o estado doentio do mundo que agora se prepara para deixar.

Sabato é um pessimista, da mesma linhagem de E. M. Cioran, o filósofo romeno de quem se sente espiritualmente tão próximo. Um filósofo não religioso que, apesar disso, acreditava que tudo se pode sufocar no homem, menos sua necessidade do Absoluto. Certa vez, em Paris, Sabato o visitou. Durante quatro horas, os dois conversaram sobre esse mundo sem ilusões, sofrendo de uma grave dor metafísica, tomado pela sensação contínua de que tudo vai dar errado. A desilusão de Sabato teria, sobretudo, uma causa: sua descrença na técnica, na ciência e na razão. Para ele, a razão se tornou apenas uma máscara para a loucura. Uma cortina para vedar um mundo no qual, disse Rimbaud, “a verdadeira vida está ausente”. É assim que também Sabato se sente nas horas finais: em um mundo gelado, mecânico, regido pela fúria do planejamento e pela obsessão pelo lucro, um mundo inumano.

Já na abertura do livro, Ernesto Sabato recorda que, durante muito tempo, resistiu aos apelos daqueles que lhe pediam um livro de memórias. “Os jovens estão desesperançados e acreditam em você”, os amigos argumentavam. Ao que Sabato respondia: “Pergunto-me se mereço essa confiança. Tenho graves defeitos que eles desconhecem. Trato de expressá-los da maneira mais delicada, para não feri-los”. Mas é justamente o modo como Sabato se inclina diante das próprias imperfeições que torna seu livro fascinante.

Na primeira parte, Primeiros tempos e grandes decisões, Sabato se debruça sobre sua infância e juventude. “À medida que nos aproximamos da morte, também nos inclinamos em direção à terra”, escreve. Por terra ele entende, sobretudo, o território remoto de sua infância, nem um pouco paradisíaca, a de um menino massacrado pelas decisões implacáveis do pai. Uma criança triste, pois os pais o batizaram Ernesto em homenagem a outro Ernesto, o irmão do mesmo nome, que morreu pouco antes de seu nascimento. “Aquele nome, aquela tumba, sempre tiveram para mim algo de noturno, e talvez tenham sido a causa de minha existência tão difícil.” Tinha pesadelos, era sonâmbulo, e por isso foi superprotegido. Depois de muitos conflitos, já na entrada da maturidade, reconheceu que seu caminho estava na arte. Logo se identificou com Van Gogh e Artaud, homens de espírito limítrofe, “que uniram sua atitude combativa à mais grave preocupação espiritual”.

Na segunda parte, Talvez seja o fim, Sabato reflete não mais sobre si, mas sobre o mundo que se prepara para abandonar. E que, apesar de todo o progresso da ciência e da técnica, ele encontra à beira do colapso. Tudo parece já estar em Homens e engrenagens, livro visionário sobre a condição humana, que ele publicou em 1951. Meio século depois, o que parecia escandaloso e exagerado, apenas se confirma. Sabato faz então um balanço da decadência humana, demonstração amarga, que já não se deixa consolar por nenhuma ilusão.

Na parte final, A dor rompe o tempo, escrito depois da perda de seu filho Jorge, ele está completamente desamparado. Espelha-se, então, nos versos de Hugo Mujica, sacerdote e poeta argentino: “No fundo não há raízes, há o que se arrancou”. É com o vazio, esse fluido anestesiante que borra todas as margens e rouba todos os contrastes do mundo, é com esse sentimento incômodo de aproximação do Nada que ele agora escreve. Recorda, então, a recente viagem de despedida à Albânia, onde recebeu o prêmio Ismail Kadaré, e o desmaio sem causa que o derrubou na volta, durante uma conexão no aeroporto de Viena, ele também já sem raízes, deixadas para trás, muito atrás, e sem a possibilidade de se conservar de pé. Para se consolar, recorda as palavras de Agostinho, que disse que também na eternidade nada se passa.

Inquieto, recorda ainda uma reflexão (que é também uma blasfêmia) de Simone Weil, a advogada francesa sobrevivente do Holocausto, ao dizer que o sofrimento é a prova da superioridade do homem sobre Deus. No meio da dor, Sabato parece inclinado a aceitar esse ultraje ao Absoluto, mas admite que isso acaba sempre por confundi-lo. Ampara-se, então, na sentença de Oscar Wilde: “Onde há dor, há um sonho sagrado”. Perspectivas que se mesclam, pensamentos que se contradizem, grande e grudenta teia sobre a qual Sabato, já fraco, muito fraco, se sustenta. Agora, só tem diante de si o indecifrável. Como o protagonista de O túnel, seu romance mais importante, de 1948, Juan Pablo Castel, ele se sente condenado ao fracasso, mas não se envergonha disso. Escreve: “Minha vida parece ir acabando, como em O túnel, com janelões e túneis paralelos, onde tudo é infinitamente impossível”.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho