Caminhar e chorar

O inusitado encontro com um cavalo impulsiona uma reflexão sobre alguns aspectos da existência
Ilustração: Amy Maitland
01/04/2025

A luz dos faróis bate em meus olhos. Não há lua e as estrelas desapareceram. Ouço o chirriar dos grilos e o ronco nefasto dos motores. Tanta correria, para quê? Ao meu redor, ninguém. Antes eu tivesse ficado no Café de Gaza, na companhia de Rogério. Ele sim foi sensato. O Gaza é um abrigo precário no meio do nada, mas é um abrigo. Recusei-me a ficar. Sou teimoso, garanti ao senhor Hernández que chegaria cedo e quero cumprir minha palavra. Mas agora essa: não sei mais onde estou. Não há placas de sinalização. A solidão me sufoca.

De repente surge da mata, arrastando-se até a estrada, um cavalo. Não sei andar a cavalo, então ele de nada me serve. O bicho parece sonolento. Esgotado. Penso nas vacas, que têm olhos tristes, de desilusão e de tédio, prevendo o abatedouro. Os cavalos, ao contrário, têm olhos vazios, de abandono. Como os jumentos. Cada animal com sua sina. E eu, como homem, carrego minha sina de homem. O que há de surpreendente nisso?

Aproximo-me do cavalo, ele me olha. O que um homem que não sabe andar a cavalo faz com um cavalo? Ainda mais com um cavalo sem sela. Parece calmo. Arrisco-me e o acaricio, ele gosta. Agora seremos eu e o cavalo a caminhar sem rumo. Já não é mais para a fazenda de Hernández que me dirijo, disso estou certo. Perdi todas as esperanças. O pior é que, no horizonte, trovões começam a espocar. Vem uma tempestade. Agora, sim, estou perdido.

O vento está forte, serei engolido. Eu e o cavalo, como Nietzsche no episódio célebre de Turim, restaremos abraçados. O filósofo alemão abraçou um cavalo para protegê-lo dos maus tratos. Dizem que, ainda agarrado ao bicho, Nietzsche desmaiou. Lendas da filosofia. Mesmo as ciências exatas se erguem sobre lendas. Ficções. A imaginação é mais forte que o real. O episódio de Turim aconteceu no ano de 1889, mesmo ano da proclamação da República. Mas o que isso quer dizer? Nada. Somos nós que nos distraímos lendo mensagens onde elas não existem.

Lembro de outro cavalo triste que, um dia, há muitos anos, encontrei em uma rua de Cascadura, ali pela praça dos Quitandeiros. O fotógrafo Rogério Lugones sempre me adverte: “Você transformou Cascadura em um Olimpo. Todas as grandes histórias que recorda se passam em Cascadura”. Pode ser. Pode não ser. Não é fácil formar uma dupla de trabalho com Rogério. Mas, justamente porque ele é pirracento, é teimoso, quase que só por isso, ele se tornou um fotógrafo genial, o que compensa todos os sofrimentos e todos os defeitos.

Grandes filósofos, como Kant e Schopenhauer, defenderam fortemente os animais. A ética kantiana, já me disse o próprio professor Hernández, valoriza o respeito pelos bichos. Sim, tudo isso é muito bonito, muito elevado, e eu concordo com tudo, mas, na prática, o que faço agora com esse cavalo que me encara? Será que eu o abraço? Será que o beijo? E de que tais gestos extremos serviriam, a não ser para me lambuzar de lama? Fico aqui, atônito diante da grande noite. Enquanto isso, Borges, em O ouro dos tigres, me alerta: “Que eu saiba, ninguém até hoje alcançou a alta vigília”. Tarefa dos poetas, dos grandes, nem Blake, ou Whitman a tocaram, afirma Borges. É desanimador, mas é assim.

Como nada entendo de filosofia, não discuto com o professor Hernández. E como sou um leitor medíocre, que mal leu alguns clássicos, diante da sentença de Borges, calo minha boca. Volto ao cavalo. Ele continua a me olhar. Pede-me alguma coisa, mas o quê? Não é a mim que pede, é ao mundo. Eu não passo de uma sombra. Será que cavalos veem algo além das sombras? Já li em algum lugar que cavalos veem cores, mas não as mesmas que os humanos. Que cores serão essas? Repito aqui ao cavalo uma pergunta que, um dia, o Bispo do Rosário me fez: “De que você me vê?”. Só para dar uma resposta, respondi, no improviso: “Azul”. Disse o Bispo: “Parabéns, você acertou”. Mais tarde, na secretaria do manicômio, alguém me explicou que qualquer resposta que eu desse, estaria certa. A questão não era acertar — não estávamos numa loteria —, a questão era mais simples e mais difícil: apenas responder.

A tempestade começa. A chuva escorre pela minha face, e já não sei se é a chuva, ou se são minhas próprias lágrimas que eu engulo. Volto a caminhar. Em desalento, o cavalo — que passo a chamar de Bucéfalo — me segue. Logo eu, que não me chamo Alexandre e que sou um homem pequeno em uma noite imensa. Eu, o pequeno, o medíocre, caminho e choro. O cavalo vem atrás de mim, mas não sei se ele chora. Quando têm os olhos irritados, dizem, cavalos choram, mas as lágrimas não são expressões de sentimentos. Minhas lágrimas, contudo, expressam o quê? O que exatamente sinto, além de um imenso medo?

Até que um carro para no acostamento. É Rogério Lugones que veio me salvar. Devo admitir, mesmo a contragosto: ele sempre me salva. “Vai ficar aí parado? Vamos, entre!”, ele me diz, abrindo a porta. Não consigo me mexer. Tenho a boca aberta. De horror? “Mas, o que faço com o cavalo, Rogério?” Responde que ora bolas, o cavalo não é meu. “De quem é esse cavalo?” Em um ímpeto, digo que acabo de adotá-lo e que o batizei Bucéfalo. “Quanta bobagem, você anda lendo demais. Entre no carro e o bicho que se vire. Ou você vai querer levá-lo para a fazenda de Hernández?” Não seria má ideia. Meu amigo me explica que a fazenda está bem perto. Ocorre-me que talvez o cavalo seja um dos cavalos de Hernández perdido na noite.

“Ele achará seu caminho”, Rogério rouba meu pensamento e tenta me consolar. Será mesmo? Ridículo. Ainda olho para trás. Agora acho que meu Bucéfalo está chorando, mas deve ser a chuva, ou só uma impressão tola. Mesmo que chore, como o senhor Hernández já me ensinou, não é um choro expressivo, não passa de um cacoete nervoso. A fisiologia acima dos sentimentos. A biologia acima da alma. A vida acima da morte?

O carro avança e eu, com o pescoço torto, não desgrudo os olhos do cavalo, que fica para trás. Agora não é a chuva, agora eu choro mesmo. Sou um velho sentimental e ridículo, que soluça na noite. Mas Nietzsche, o grande filósofo, não desmaiou? Só me falta essa, só me falta desmaiar também. Em meu caso, porém, a história nada registraria, seria apenas vergonhoso.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho