A estratégia do vento

Crônicas ajudam a pensar a concepção de Clarice Lispector sobre a literatura
Ilustração: Carolina Vigna
28/01/2019

As crônicas que Clarice Lispector publicou, durante sete anos, no Jornal do Brasil — agora em nova edição, Todas as crônicas — nos ajudam a pensar a respeito da concepção singular que a autora tinha da literatura. Um mundo no qual a vida e a escrita estão não apenas juntas, mas confundidas. Em uma breve anotação intitulada Não sentir, Clarice reflete sobre a importância do risco e da dor, matérias primas de seu pensamento: “Sentindo menos dor, perdeu a vantagem da dor como aviso e sintoma. Hoje em dia, vive incomparavelmente mais sereno porém em grande perigo de vida”. Da vida, mesmo dolorosa, não há como fugir. Escreve suas crônicas “ao correr da máquina”, sem se importar com gêneros literários e, até mesmo, se elas são crônicas, ou não. Ao sabor do vento. O que lhe importa é o sentimento do mundo.

Mais à frente, em Dies irae, ela medita: “E por que, só porque eu escrevi, pensam que tenho que continuar a escrever?”. Expressão direta da existência, as crônicas não podem ser, portanto, uma obrigação. Ainda assim, os redatores do Jornal do Brasil esperavam que, conforme o contrato de trabalho, ela lhes entregasse uma crônica a cada semana. Clarice escreve, contudo, sobre sensações, que não são domesticáveis, ou planejáveis. Sua tendência é falar dos sentimentos, e não dos fatos. Em As grandes punições, tenta se corrigir: “Vou contar logo o que realmente era, antes de narrar o que realmente senti”. Mas não consegue. Não teme nem os sentimentos mais desconfortáveis, como o medo. Em A favor do medo, ela anota: “Estava alegre e revolucionada — mas era pelo medo. Pois sou a favor do medo”.

Em Clarice, literatura e existência se grudam de tal modo que é quase impossível separar a autora da narradora. Para ela, a crônica era uma conversa banal em que o pensamento divaga. E não temia nem a banalidade, nem a divagação; ao contrário, considerava-as elementos decisivos de sua escrita. No texto O caso da caneta de ouro, meditando sobre os perigos da crônica, ela diz: “A caneta de ouro nos levara longe. Achei melhor parar. E por aí ficamos. Nem sempre esmiuçar demais dá certo”. Mas como delimitar a escrita? Como saber quando parar? Em Ao linotipista, ela chega a se desculpar com o operador da máquina de linotipo por sua pontuação caótica: “Agora um pedido: não me corrija. A pontuação é a respiração da frase, e minha frase respira assim. E se você me achar esquisita, respeite também. Até eu fui obrigada a me respeitar. Escrever é uma maldição”.

Em O grito, ela define o que faz, não como crônicas, mas como um grito de cansaço. Para Clarice, escrever lhe arranca pedaços. E por isso dói. Sabe, porém, que também tira vantagens de seu trabalho. Em Adeus, vou-me embora, admite: “Os cronistas, pelo menos os do Rio, são muito amados”. Os leitores reconhecem que, na escrita da crônica, gênero por excelência do Eu — que Clarice via, antes de tudo, como máscara — há uma grande entrega. Ela sabe ainda que a crônica é, quase sempre, uma maneira que o escritor tem de arrumar sua desordem interior. Via-se modestamente: “Não sou uma literata, ou uma intelectual. Feliz apenas por fazer parte”, escreve em Pertencer. A escrita, para ela, era algo íntimo demais para tomar a forma do ornamento, que é sempre exterior, e exibicionista.

A crônica também lhe serve como instrumento de aproximação do ininteligível. Em Ritual, ela diz: “Por que um cão é tão livre? Porque ele é um mistério vivo que não se indaga”. O ininteligível seria, assim, a desgraça da língua. Com sua escrita mais suave e ao correr do coração, o cronista — que aparentemente, só aparentemente, leva o real menos a sério — se aproxima mais do cão, com sua sabedoria silenciosa, do que do homem que é cheio de palavras. Prossegue Clarice: “É fatal não se conhecer e não se conhecer exige coragem”. Afasta assim o cronista da imagem do intelectual, e acentua seu caráter de homem comum, que apenas vive.

Sabe que o escritor é um condenado — a tentar sempre, sem nunca realmente se realizar. Em Delicadeza, Clarice nos diz: “Nem tudo o que escrevo resulta numa realização, resulta mais numa tentativa”. A luta é inglória, mas, ainda assim, vale a pena. Quanto ao cronista, é verdade, ele tem sua escrita circunscrita pelos prazos comerciais. O cronista é um funcionário da escrita — só que esse fato em nada lhe rouba a liberdade. Talvez ao contrário: como alguém que veste uma roupa muito apertada, ele precisa considerar com mais sutileza a respeito da maneira de se mexer. Sabe, de outro lado, que o estilo bruto e espontâneo muitas vezes provoca no leitor uma ponta de estranheza. “Parece que às vezes, sou espontânea demais e isso me torna engraçada”, diz em Facilidade repentina. Esse relaxamento, no fim das contas, exprime uma posição serena em relação à escrita. “Escrevendo à vontade. Sem muito sentido, mas à vontade. Que importa o sentido? O sentido sou eu.”

Clarice, a cronista, sabe o valor da liberdade. Em Esboço do sonho do líder, ela diz: “Antes de aprender a ser livre, tudo eu aguentava — só para não ser livre”. Foi começar a ceder e chegou à liberdade. Medita assim sobre o estranho conforto das barras de apoio oferecidas pela prisão. Seu objetivo, sempre, ultrapassa a própria literatura e se aproxima ferozmente da vida. Em Autocrítica, no entanto, benévola, ela assim descreve seu objetivo final: “Chegar àquele ponto em que a dor se mistura à profunda alegria e a alegria chega a ser dolorosa — pois esse ponto é o aguilhão da vida”. Seu objetivo, portanto, é chegar ao intransponível. Este é o limite de sua escrita; como se um muro a esperasse logo à frente.

Em Escrever ao sabor da pena, Clarice resume sua estratégia de cronista. “Não, não estou me referindo a procurar escrever bem: isso vem por si mesmo. Estou falando de procurar em si próprio a nebulosa que aos poucos se condensa (…) — até vir como numa parte a primeira palavra que a exprima”. Escrever no escuro, deixando-se levar como um balão que flutua ao sabor das correntes de ar, sem bússola e determinar um ponto de chegada. Essa é a grande liberdade do cronista.

Todas as crônicas
Clarice Lispector
Rocco
704 págs.
José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho