A casa da raiva

Sinais apavorantes surgem de todos os lados, pois a paranoia é, antes de tudo, plástica
Ilustração: Glauber Shima
28/06/2019

Nosso mundo fake é, antes de tudo, um mundo de disfarces, de máscaras e de dissimulação. Um território regido pela falsificação e pela traição. A tecnologia nos trouxe até aqui: em uma sociedade na qual tudo se duplica, em que tudo repercute e se reproduz velozmente, já não sabemos mais o que as coisas significam, o que escondem, o que efetivamente são. Esse mundo difícil e até terrível, embora fascinante, foi capturado, há quase 100 anos, por um dos mais esquecidos escritores do século 20 brasileiro: Octavio de Faria (1908-1980).

Costumamos lembrar apenas que Octavio é o autor da Tragédia burguesa, série que 15 romances que devassam a vida da classe média brasileira, e que ninguém leu. Devo admitir logo: eu também não li. Mas agora me chega às mãos, com o selo do Casarão do Verbo, de Anajé, Bahia — pequena cidade a 560 km de Salvador — a quinta edição das Três novelas da masmorra, um dos preciosos livros perdidos de Faria. Nele, encontramos um surpreendente relato sobre o inferno da duplicação. O mesmo em que hoje nos queimamos.

Detenho-me no primeiro e mais forte dos três relatos, as Memórias de um cão danado, publicado pela primeira vez em livro no ano de 1966. A primeira edição conjunta das três novelas é de 1968. A epígrafe, tomada da Ilíada, de Homero, resume o espírito do conto: “…cães devoradores me despedaçarão — esses mesmos cães que, para guardar minha casa, alimentava debaixo de minha mesa e que, agora, desconhecendo o antigo senhor, beberão, cheios de ódio, meu sangue, esponjando-me no pórtico de meu palácio”. Suspeita, perseguição, paranoia se infiltram em nossa vida contemporânea, mas Faria já os antevia com assombrosa lucidez.

Esse primeiro relato, páginas de um diário datado de fins dos anos 1950 que, diz o suposto editor, “me vieram ter às mãos nem sei bem como” e que agora ele apresenta como uma “novela”, reúne as notas de um homem perseguido por cães. “Tudo neles era blandícia e engodo. Sorriam, mesmo sendo cães. Disfarçavam — e eram animais! Impossível deixar de atacá-los, sob pena de sofrer os golpes traiçoeiros dessa antiquíssima canalha”. A ameaça do ataque inesperado gera, por antecipação, novos ataques igualmente inesperados, que se apresentam como gestos defensivos. Ambos, o homem e o cão perseguidor, se engalfinham (se confundem) em uma luta raivosa. Embrenham-se — como nós hoje também — no mesmo ódio. A ameaça de um justifica e exacerba a ameaça do outro, e a raiva fica “explicada”.

A paranoia — o delírio de perseguição sistematizado, transformado em “literatura interior” —, também em nosso pobre mundo, dá as cartas. Vejam as guerras e, em especial, as chamadas “guerras preventivas”. A divisão do mundo em blocos rígidos, sistemáticos, de inimigos invioláveis e inconciliáveis. Assim também vive o narrador dessa novela: tenta construir teorias, leis, sistemas que expliquem e justifiquem seu ódio. Por que não — pois quase sempre termina assim —, que expliquem sua desgraça. Sem essas amarras de segurança, ele se desnorteia. Ele se perde. Precisa da teoria e da raiva para reconhecer seu caminho.

“Não nasci ontem. Assim vi o Grande-cão, fiz-me, eu também, sorrisos e disfarces.” O que é apenas um cão furioso, ou mesmo raivoso, se transforma, logo, em uma manifestação, quase religiosa, do Mal. Aqui é preciso lembrar que Octávio de Faria foi um católico fervoroso, e que o Mal — encarnado na metáfora do Grande-cão — esteve, sempre, no centro de suas preocupações. Seja como for: no relato que tenho nas mãos, o problema do narrador não chega a ser religioso, ou não é só religioso. “Estávamos sós, mas eu previa, à volta, toda a matilha, disfarçada, escondida, pronta a intervir ao primeiro sinal do cão-chefe.” É o mundo, todo o mundo, que se contamina, e se transforma em um grande alçapão. A masmorra está logo aqui, sob nossos pés. Estamos na casa da raiva.

Sinais apavorantes surgem de todos os lados — pois a paranoia é, antes de tudo, plástica, ela “cria” verdades inexistentes. Cães variados, de diferentes raças, sexo, porte, carregam a mesma máscara de ódio. O narrador também se vê, muitas vezes, perseguido por bêbados, mas, para ele, a perseguição dos cães é ainda mais intolerável, porque imprevista e irracional. Nela trabalha o veneno do instinto. Nela a natureza se deixa domar pelas baixezas que estão além do humano. Na rua, caminhando rumo à casa dos sogros, é seguido por um cão “pobre-diabo”. Pensa: “Cão do diabo, por que você não me larga?”. Na aparência, o bicho só quer afeto, companhia, mas quem pode saber o que ele realmente quer? Também Selva, uma cadela cega, “um dos cães mais afetivos que conheci”, o atormenta. A desconfiança se espalha e o adoece.

O cão pode estar, ainda, não no real, mas nos livros. Quando menino, tímido e nervoso, o narrador se assombrou com a leitura de O cão dos Bakersvilles, de Conan Doyle. Esse cão fantasma original é o protótipo de todas as outras feras que o atormentarão ao longo da vida. Já adulto, terminando a leitura de um “Tratado de Hidrofobia!”, ou concluindo uma tradução das Memórias de um cão, de Virgina Woolf — os capítulos se repetem, são reescritos com muitas variações, eles se duplicam e, como fantasmas, nos assombram e ameaçam — o pobre homem é perseguido por Plutão, o cão policial de um vizinho. O perigo pode vir de qualquer lado; em especial, daqueles que parecem mais dignos de confiança. Como viver em paz em um mundo traiçoeiro?

Também como em nossos dias, o narrador vive atormentado pelo medo da contaminação. No caso, pela hidrofobia, ou raiva, doença transmitida pelos cães danados. Como se sabe, a raiva provoca convulsões, paralisias, danação. Não é assim que nós também ficamos quando nos deixamos tomar pelo ódio? Na casa da Tijuca, Zago e Selva, cães furiosos, atravessam, deus sabe como, uma janela de ferro para atacá-lo brutalmente. Os ferimentos ali estão como prova — mas como acreditar, os amigos pensam, que os cães romperam, de fato, aquelas grades? A raiva se desdobra no impossível. Ela se transforma, ou se mistura com o pânico. Como é possível confiar em um mundo que se dissimula e se disfarça? Como acreditar, em um mundo no qual as crenças, ou provocam novas paranoias, ou só servem para a trapaça?

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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