Durante a pandemia de covid-19, em 2021, Tatiana Salem Levy publicou Vista Chinesa, um livro impactante sobre um estupro ocorrido em meio ao furor da celebração da Copa do Mundo do Brasil, em 2014. O Rio de Janeiro também vivia a expectativa das Olimpíadas de 2016. Júlia é sócia de um escritório de arquitetura que está planejando alguns projetos na futura Vila Olímpica. No dia de uma dessas reuniões com a prefeitura, ela sai para correr no Alto da Boa Vista. A certa altura, alguém encosta um cano de revólver na sua cabeça e a leva para uma área baldia. É estuprada. Agora, a autora volta ao romance com outra história sobre violência contra a mulher, em uma narrativa com toques autobiográficos. Aos dez anos, a protagonista relaxa numa piscina, na companhia da mãe e do padrasto. Sem ter chegado ainda à puberdade, se desfaz da parte de cima do biquíni e desfruta da inocência sob o sol e o vento. O sossego é interrompido quando o padrasto, um aclamado cineasta, apresenta o esboço do desenho de observação que fizera há pouco — ali está a menina, retratada naquele momento, com um detalhe que foi impossível passar desapercebido: “Seus mamilos, apontando um para cada extremidade do papel, chamam a atenção. Há mais tinta neles, foram desenhados com força. Estão eretos, reparo”. Esse acontecimento marcaria o fim da infância daquela menina, filha de uma intelectual e jornalista pioneira, uma mulher de espírito e vitalidade incomuns. E, a despeito disso ― como repara a narradora, já adulta ―, até mesmo essa mãe poderosa e aparentemente imbatível teve que se haver com os flutuantes desejos masculinos e as desigualdades gritantes entre os gêneros. Na vida e na arte. Fazendo do título do livro um paradoxo, a narradora resolve então contar tudo (ou quase): da doença galopante que vai tirar a mãe do seu convívio ainda na juventude à reação de um companheiro a um aborto da protagonista já madura e morando no exterior. Salem Levy nunca relatou os assédios a sua mãe — a escritora e jornalista Helena Salem, morta em 1999 aos 51 anos. Ela manteve um relacionamento de vários anos com Nelson Pereira dos Santos, cineasta morto em 2018 e um dos principais diretores do movimento do cinema novo, que era casado com outra mulher. Desde sua estreia na literatura, Tatiana Salem Levy tem se notabilizado por ser uma voz marcante no cenário brasileiro. Seu primeiro romance, A chave de casa, que narra a busca de uma descendente de judeus turcos por seu passado, venceu, em 2008, o Prêmio São Paulo de Literatura, na categoria autora estreante. Melhor não contar soma-se a uma bibliografia de bons romances publicados pela autora ao longo de duas décadas.