O crânio de Castelao (7)

Leia o capítulo 7 do folhetim "O crânio de Castelao"
Ilustração: Theo Szczepanski
01/04/2013

Capítulo 7

Mindelo, areia fina, peixe na grelha, aquela massa amarela e delicada com o aspecto do vómito dum menino que se desfazia na boca num surf de mandioca e camarão (que qualquer brasileiro chamaria de “pirão” num excesso de patriotismo alimentar), a companhia da palidíssima mulata, o luar a triunfar no céu acompanhado do seu escândalo de estrelas, a mão dela como se fosse um animal autónomo a deixar correr as garras pela camisa suada do europeu transpirado, a bebida de limão galego com qualquer álcool que era melhor não tentar decifrar. P. relaxou-se na cadeira de palma deixando agromar na lassitude a sua barriguinha de sedentário investigador universitário. Aquela curva no abdómen era o único que estragava a romântica situação naquele restaurante da praia de Mindelo. Finalmente ele era James Bond: rapariga exótica, cocktail e uma investigação resolvida sem sofrer um rascunho. Paula (ou como hóstias se chama) deixou cair a sua olhada ocupada até aquele momento em contar estrelas na barriga do James Bond, e ele, heroicamente, meteu-a para dentro e avermelhou ainda mais pelo cosmético esforço. A boca da autêntica filha do Frankenstein cabo-verdiano achegou-se aveludada à orelha de P. que se dilatou como se fosse outro órgão qualquer.

— Fala-me da tua vida, pequeno.

A frase era uma vulgaridade, mas oferecia gratuitamente a oportunidade de impressionar definitivamente uma rapariga do terceiro mundo que lembrava a conferência dele nos U.S.A. como quem evoca uma ópera de Gounod. Os olhos de Paula brilhavam enquanto ele relatava a sua secretíssima missão com a inconsciência dum adolescente com crise feromônica. Caminharam pela praia de metacárpios dados. Não calou nada. A entrevista no museu dum Santiago longínquo, Sandra I, a vertigem do Porto, o Marbella constipado, a placa dental do professor, os traficantes de presunto humano, Sandra II, pesadelo, confusão, sedutor recepcionista, aventura no aeroporto de Lisboa — com ele transformado em Charles Bronson —, esse aveludado objecto de desejo, a caixa que nada continha de interesse, a mensagem no celular que o autorizava a regressar a casa, a espantosa semelhança de Paula com as Sandras anteriores…

— Não é muito gentil que me aches idêntica a essas duas estúpidas — disse ela na ponta da praia com ciúme fingido.

P. Sorriu (modelo Bond) e inclinou-se para a beijar. Uma pergunta interrompeu o gesto de cinema. Então o meu detective conseguiu o valioso crânio.

— Não, está na Argentina.

— Merda!!!!!

A moça virou-se e foi-se com passo decidido para o único táxi que cintilava ao longe.

— Isso digo eu — decepcionou-se o galã. Sem compreender viu como o corpo de mulata sumia na penumbra tropical. Olhou-a. — Que estúpido sou, essa bunda não é de mulata. — Correu, já inutilmente. O aeroporto de São Vicente era um galinheiro alemão alporizado. Aquele grupo de teutões contrataram a viagem de regresso à ilha do Sal num bimotor Fokker empurrados pelo patriotismo económico e por uma tradicional desconfiança nas pessoas de pele escura. O que provocava o pandemónio de gritos e lamentos era a comprovação de que o Fokker era uma relíquia da Segunda Guerra Mundial. P. ironizou olhando para o aparato memorabilia ahistórica. Um fleumático empregado das linhas aéreas cabo-verdianas completava em inglês uma explicação das excelências do avião: “…em caso de cair ao mar tem um dispositivo que emite um líquido repelente para tubarões”. Os alemães choravam e invocavam os seus deuses nórdicos. Algum exigia uma jangada para fugir daquela ilha canibal. P. sentiu que a épica espiónica que se estragara na noite anterior na praia podia-se reeditar no pré-histórico aparelho.

— Desculpa por te ter deixado ontem tão precipitadamente.

— Oh, meu deus, estava eu disposto para subir a esse caixão voador, mas agora duvido. A tua presença só pode trazer desgraças e azares.

— Olha, que falas. Mesmo semelha que levamos trinta anos casados. Disse ela com um sorriso de ternura.

— Tenho uma prenda para ti.

Mostrou um paquete envolto em papel castanho. P. Olhou com desconfiança galega. Inspirou e fez intenção de abrir. Paula apanhou-o da mão e levou-o para a casa de banhos. P. surpreendeu-se a ver-se em reduzido cubículo que lhe lembrava as sanitas dos antigos trens Vigo-Porto. “Procede de ajuda humanitária enviada pelo governo português ao povo irmão de Cabo Verde.” As mãos trementes de P. rasgaram o papel e na sua mão apareceu a eterna caixa de veludo azul, a excitação fez-lhe suar as mãos e não conseguia abrir o fecho nem reparava em que as finas mãos da menina abriam com a precisão cirúrgica as suas calças.

— Uma rapariga surpreendente — pensou P.

— E para tu levares uma lembrança agradável de Cabo Verde, desculpa a falta de romantismo, mas resta pouco tempo para a tua partida.

Introduziu o pé no lavabo e ergueu a saia de sirga. Debaixo tinha como única prenda uma pélvis de mulher de raça branca. Ao mesmo tempo caíram as calças de P. e abriu-se o fecho da caixa. Dentro havia um solitário profiláctico que não procedia do cadáver de Daniel Castelao, deixou a caixa na tampa da sanita, guardou a barriga e desabotoou a camisa de seda. “Última chamada para os passageiros do vôo…” Cumpre despachar-se! Quis tirar o soutien de organdi negro mas não conseguiu. Ela ajoelhava-se e tirava abundante sabão líquido dum espicho. Num dedo oleado entrou pelo ânus surpreso do investigador. Procurou acomodar a postura para facilitar as intenções daquela mulher da sua vida. O pé escorregou no sabão, desequilibrou-se, instintivamente botou a mão ao soutien, que se libertou com violência do corpo da rapariga.Sem apoio P. caiu para atrás. Antes de bater com a cabeça contra a alavanca da porta lembrou que, quando menino, também tentara agarrar-se ao jorro de uma fonte para não cair.

Quando acordou doía-lhe a cabeça. Um preto gigante e inexpressivo mastigava uma papa que bebia dum crânio. Acompanhava-o uma kalashnikov AK-47 e uma algibeira de frechas. Uma voz feminina falava coincidindo com as mastigadas do homem.

— Outro puto pesadelo. Aqui não há quem bote um canivete. — pensou aflito P.

Resumo dos acontecimentos seguintes:
P. está numa embarcação e não é sonho nenhum. A voz é de Paula; o homem é um feiticeiro e guerrilheiro que o presidente da Guiné empresta a outros líderes africanos. Paula convocou-o para que ajudasse P. O guerrilheiro, ao beber num crânio, conhece a vida do homem que o possuiu em vida. Ele ajudará P. a distinguir os verdadeiros dos falsos. P. insulta Paula e acusa-a de estragar-lhe a vida. O guerrilheiro desfecha uma rajada da AK-47 em direcção a Paula, interpretando literalmente uma frase de P. Este atira-se a ele para evitar que a mate e na confusão os dois caem ao mar. O guerrilheiro imortal afoga. Paula, apavorada, tranca-se no porão da pequena embarcação e não dá por nada. P. é resgatado por um barco congelador que vai cheio de galegos rumo a Vigo. No barco escutam a rádio galega: o presidente da Junta dirige-se a Lisboa para receber o crânio de Castelao em companhia da polícia autónoma que estréia fato de honra. P. quer sequestrar o barco.

Leia o capítulo 8 por Possidónio Cachapa

Quico Cadaval

Nasceu em Ribeira (Galícia), em 1960. É ator, diretor e adaptador teatral, tendo sido impulsor do movimento de conta-contos (contação de histórias) surgido na Galícia na década de 1990. Entrou para a interpretação teatral no final dos anos 1970, no Centro Dramático Galego, continuando depois na companhia O Moucho Clerc. Participou em diferentes produções da Televisão Galega, assim como em filmes de curta e longa metragem. Alguns trabalhos que realizou foram Shakespeare para ignorantes (2010, como ator) e A miña sogra e mais eu (2004, como diretor), entre outros. Atualmente continua a trabalhar no audiovisual como ator e como roteirista.

Rascunho