O crânio de Castelao (8)

Leia o capítulo 8 do folhetim "O crânio de Castelao"
Ilustração: Theo Szczepanski
01/05/2013

Capítulo 8

— Puta de vida — disse P., levando a mão à nuca que lhe doía como se dois rinocerontes galegos (que os houve, ainda que não se lhe tenham encontrado, por enquanto!, as ossadas) lhe tivessem passado por cima.

Uma onda passou sobre a amurada e encharcou-lhe os ombros e a cabeça. O contacto com a água fria teve a virtude de o despertar definitivamente.

“A caixa?”, pensou, levando a mão ao lado — onde, obviamente, nada se encontrava. Um homem, vestido com uma roupa clara, onde se desenhara um símbolo violeta, levantou um saco.

— É disto que estás à procura?

P. levou a mão à cara, pálida, e nada disse.

— Não tenhas medo: as coisas valiosas nunca se perdem verdadeiramente. Desaparecem, por uns tempos, antes de reaparecerem em toda a sua glória.

O saco aparecia e desaparecia, sem que P. pudesse ajuizar da sua existência real. Resolveu tomar por delírio a figura que tinha à frente e a materialização ensacada do seu desejo.

O homem ria-se, grotesco, e P., através de um nevoeiro, viu que seus olhos eram amarelos e ardiam, fixos nele. Viu isto e tombou, de novo, numa inconsciência que começava a ser irritante.

Era um universo de dedos descarnados. Tudo se construía sobre um fundo demasiado claro para ser azul. Mas era céu e tudo o mais que flutuava nele não poderiam ser ossos, mas eram. Uma menina atravessou uma rua onde carros construídos de tíbias, com faróis feitos de dezenas de olhos vítreos, se cruzavam lentos. Do chão nasciam árvores fálicas, feitas de braços de tamanhos e cores variadas; as folhas eram quase sempre dedos, excepto nos Chorões em que as copas se tinham constituído a partir de cabeleiras humanas, escuras, negras, por vezes grisalhas, nos carvalhos mais velhos e nalguns sobreiros que pareciam perdidos no meio daquela cidade de despojos humanos. P. caminhou através dela, sentindo uma mágoa mais pesada do que conseguia suportar. O que vulgarmente se chama “um nó na garganta” tinha-se transformado nele em algo maior e íntimo; uma coisa viva que trazia no peito. E que, pouco a pouco, lhe começou a empurrar, por dentro, a pele do peito, até se tornar uma dor insuportável que o ameaçava de explodir…

SPPPAASSSHHHHHH…. fez a onda na amurada. P. abriu os olhos a tempo de ver a enorme barbatana negra traçar um círculo, antes de se sumir no mar. Doído e morto de enjôo, levantou-se com as pernas trementes e olhou o mar azul-azul. Duas baleias cruzavam o oceano, escapando sem pressa às balas que um jovem grumete lhes procurava espetar no dorso. O rapaz estava empoleirado sobre a proa do barco; as pernas trancadas num espigão gigantesco de madeira que precedia a chegada. Tinha nas mãos um rifle antigo que projectava para a frente, em direcção aos arredondados corpos que subiam e desciam longe do seu alcance.

“Onde estaremos?”, tentou perguntar P., mas a voz sumira-se, no meio do movimento dos elementos naturais.

Era quase noite. E a costa, que julgava ter chegado a avistar, sumira-se completamente. O vento soprava em grandes rajadas e um coro de nuvens sobrevoava a pequena embarcação, como um grupo de hárpias murmurando palavras mortais.

Na cabine, dois homens ocupavam-se do leme.

P. foi ter com eles a tempo de descobrir que o capitão se chamava Xavier e o grumete, Anjo. Eram pai e filho, todos sabiam. Mas ninguém a bordo se permitia referir ao facto, porque Xavier era casado com uma mulher terrível que não fazia questão de ser a única na vida dele, mas que odiaria saber que ele teria emprenhado outras. Foi assim que Anjo nasceu e cresceu. Todos os dias que não estava no mar, o capitão Xavier o visitava e lhe dava a bênção. Se ele se tivesse portado mal com a mãe, a morena Laura, ali mesmo lhe dava grandes estaladões, que o menino tomava como prova de interesse. Eram pai e filho, mas nenhum dos dois podia pronunciar essas palavras. E, quando o taberneiro Gimenes se lembrou de usar a palavra “aparentados”, recebeu com uma pipa de vinho na cabeça que pesava mais de cinqüenta quilos. A pipa. Com o vinho. Ninguém sabe onde foi buscar o marinheiro tanta força. Mas ninguém se interrogou sobre o assunto, porque estavam habituados às suas manifestações de extraordinário. Xavier tinha um metro e cinqüenta e três, mas tinha o mesmo de largura, e as amantes juravam a pés juntos que haveria outras partes da anatomia que se aproximariam destas medidas. Isso não se sabe, porque enquanto viveu, ninguém, a não ser elas, o viram nu. E, quando veio a morrer, anos mais tarde, foi em frente à ilha de Caracatoa, quando um dos vulcões se inflamou, lançando uma gigantesca pedra que veio acertar precisamente, sobre a cabine do “Olho-vivo”, o último navio que ele chegaria a pilotar. Morreu e foi ao fundo de uma só assentada, levando consigo o segredo de todas as suas medidas.

— Capitão — disse P. — Notícias da nossa terra?

O capitão não respondeu logo, porque estava a tentar retirar uma pastilha anti-tabaco de um molar.

— #xX(%$#% de mulher!!! — praguejou. — Primeiro foi deixar de beber, depois só se fodia às sextas-feiras porque leu na revista que era o único dia em que valia a pena… Agora esta embirração com o tabaco! Que o diabo a leve e a cubra de caranguejos para o resto da eternidade.

A seu lado, o verdadeiro-falso filho sorriu, dissimulado. Tudo o que fosse sofrimento para cima da megera que o impedia de ter o pai por inteiro era bem-vindo.

— Notícias, capitão? — voltou a perguntar o investigador.

Foi Anjo quem respondeu.

— O presidente da Junta ficou retido em Caminha. Ia no carro oficial a mais de cento e oitenta quilómetros/hora e os polícias portugueses prenderam-no por condução perigosa. Normalmente isto não teria importância (pois os governantes portugueses ainda aceleram mais), mas era dia de Tolerância Zero. E as televisões estavam lá, por isso a polícia teve de se fingir imparcial.

P. sentiu uma súbita vontade de rir. Aparentemente, isto ainda não era o fim da busca do crânio…

— Onde estamos, capitão?

— Perto dos Açores — passou-lhe uns binóculos que cheiravam a gordura de porco. — Ali, a estibordo, já se vê a ilha do Pico.

P. espreitou e, através das objectivas, viu a silhueta gigante da montanha a aparecer no meio da tarde escura.

— Vamos reabastecer o barco e continuamos viagem, amanhã.

Desembarcaram no cais das Lages. Havia ainda um cheiro a baleia, embora não se caçasse nenhuma havia mais de dez anos. Mas os fantasmas dos cetáceos continuavam por ali. Ou pelo menos os homens assim o imaginavam, continuando a falar alto nas tabernas para espantar o medo. Pararam primeiro numa taberna apertada, logo a seguir ao ancoradouro. Pai, filho e universitário em volta de uma prato de moreia frita e molho de polvo. O vinho era morangueiro, claro. Nem outro poderia ser.

No final da refeição, o capitão levou a mão à perna e fez um trejeito de dor.

— Vou fazer uma visita. Quer vir?

P. estava a começar a sentir os efeitos do vinho e a taberna escura, iluminada apenas por um candeeiro a petróleo, com os seus recortes escuros e os rostos amarelos que a compunham, começava a produzir-lhe uma sensação de mal-estar.

— Vou — disse.

— Tu, volta para o barco. Toma dele conta — ordenou o capitão para o filho-que-o-não-era.

Caminharam uns minutos pelas ruas iluminadas a pouco, acompanhados pelo ruído das cagarras voadoras, até que chegaram a uma pequena casa.

Lá dentro estava uma mulher vestida com uma bata de flores escuras e uma esfregona na mão.

— Alda — disse o capitão. E P. soube que tinha havido entre eles história de amor, porque, por uns momentos, os lábios da mulher se cobriram de novo de carmim e a lembrança de um sorriso os iluminou por um brevíssimo segundo. Depois, todo o rosto escureceu, e ela mandou-os entrar e sentar.

— Vens tratar da perna? — perguntou ela, dirigindo-se para um armário de onde retirou um frasco com uma pomada cor de argila.

— Sim, mas também ver-te, com mil diabos!

— Mentes — respondeu ela, levantando-lhe a perna da calça e começando a espalhar o produto cor-de-argila no meio dos pêlos esbranquiçados. — Mentes, mas não faz mal, porque os dias são compridos e solitários, e antes uma mentira vinda de um tempo feliz, que as verdades dos dias sem história.

P. tinha na língua uma pergunta. Mas achava tão estúpido fazê-la que não se atreveu, durante largos minutos. Ia-se limitando a dar goles na aguardente de tangerina que ela lhe indicara com um gesto de cabeça.

Foi então que a mulher o olhou directamente e disse, sem pestanejar:

— Não se devem procurar os ossos dos mortos. Mesmo que sejam inúteis no lugar para onde vão, ainda assim, os espíritos se incomodam com a profanação. E, muitas vezes, baralham a vida de quem os procura corromper…

— Sabe onde ele está, não sabe…

— Sim. No último sítio em que te lembrarias de procurar. Contudo, não poderia ser mais fácil.

Disse isto e desatou a rir-se. Era um riso fundo como uma tosse. E P. sentiu-se de novo como se estivesse no navio. Só nessa altura reparou que o cadeirão em que se sentava tinha sido feito a partir dos ossos de uma baleia. Escavado e remontado, no que tinha sido, o gigantesco crânio de um cetáceo.

Lá fora, o vento soprou mais forte. E dois bêbados conversaram por um instante, em frente à porta velha.

Leia o capítulo 9 por Possidónio Cachapa

Possidónio Cachapa

Nasceu em Évora, Portugal, em 1965. É escritor, dramaturgo e argumentista, autor de A materna doçura (1998), O mar por cima (2002) e O mundo branco do rapaz coelho (2009), entre outros. No teatro, é autor das peças Shalom (2001), Hipnotizando Helena e A cibernética (co-encenadas em 2005). Argumentista de curtas e longas metragens, realizou vários filmes, como o documentário Adeus à brisa (2009) e O nylon da minha aldeia (2012). Sua obra foi adaptada ao teatro e ao cinema e está traduzida em vários países.

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