O crânio de Castelao (9)

Leia o capítulo 9 do folhetim "O crânio de Castelao"
Ilustração: Theo Szczepanski
01/05/2013

Capítulo 9

P. sentiu que por enquanto o enjôo medrava no seu interior, e teve que sair fora. A cabeça dava-lhe voltas e mais voltas. Sentia uma ardência crescente no estômago e um desassossego que vinha dos arquivos da sua memória, em lícita associação de sensações. Nesse preciso instante uma viatura da marinha parou diante do portal. Um sub-oficial fardado de faina desceu arrebatado do assento.

— O senhor P.?, perguntou arremetente.

— Sim. Sou eu mesmo.

— O capitão do porto, tenente Pecorelli, tem uma mensagem urgente para você. Faça o favor de me acompanhar.

Quando chegaram ao velho edifício da Capitania de Porto, tudo foram portas abertas. O sub-oficial levou-o à presença do tenente Pecorelli, moço ainda e de porte distinguido, membro duma conhecida estirpe de marinhos.

Logo dos cumprimentos ao uníssono, normais entre gente distinguida e formal, o tenente Pecorelli tendeu-lhe um documento convidando com uma certa urgência a que o lesse na sua presença.

— É para você. Uma mensagem do Professor F., carimbada como confidencial pelo Comando Naval do Continente. O senhor compreenderá, portanto, que não possa sair fora desta capitania, nem tão sequer deste escritório.

P. pegou nas folhas do relatório que lhe fora entregue pelo oficial e começou a ler sem delongas:

Caro amigo P.

Pelo intermédio do Comando Naval do Continente soubemos das suas desgraças e da sua arribada no dia de hoje ao porto da Ilha de Pico, nos Açores. Pela presente envio-lhe telecópia do relatório e as conclusões a que chegaram os ilustres doutores membros da Academia das Ciências de Portugal logo do inquérito sobre o crânio supostamente pertencente a Afonso Daniel Rodríguez Castelao. Lamento informá-lo de que os resultados não foram tão bons quanto desejaríamos. Já estará você conhecedor das intenções do Presidente da Junta da Galiza de receber em Lisboa o citado crânio que lhes fora enviado às autoridades portuguesas desde Buenos Aires. Em quanto ler este relatório, faça o favor de se pôr em contacto comigo pelo intermédio das autoridades de marinha dessa capitania de porto. Saudações.

A seguir estava o texto do relatório e P., logo duma pausa para reflectir, começou a leitura:

RELATÓRIO DA ACADEMIA DAS CIÊNCIAS SOBRE O CRÂNIO SUPOSTAMENTE PERTENCENTE A AFONSO DANIEL RODRÍGUEZ CASTELAO

No dia 27 de Maio do ano 2000, reunida na cidade de Lisboa a equipa de investigações forenses desta Ilustre Academia das Ciências e analisado o crânio pretensamente pertencente a Afonso Daniel Rodríguez Castelao que nos fora remetido pelas autoridades do Ministério dos Negócios Estrangeiros para exame e avaliação pericial, emitimos o seguinte relatório destinado às autoridades que correspondam e a qualquer que quiser fazer uso dele:

1. Tratar-se-ia, com certeza absoluta, de um crânio humano pertencente a um espécime de sexo varão, circunstância na que concordamos todos os membros de esta equipa.

2. A análise macroscópica externa do crânio dá para pensar num individuo braquicéfalo, tendo os eixos ântero-posterior e transversal uns comprimentos de vinte e nove e vinte e cinco centímetros, respectivamente. O eixo ântero-posterior foi medido entre a base do osso occipital e o ponto médio do osso frontal. O eixo transversal foi medido entre os dois orifícios auditivos dos ossos temporais. Estas medições poderiam não ser consideradas apropriadas, mas resultaram ser as mais concludentes. Fora descartado o uso dos índices de Brocca e outras medições biométricas do crânio por redundantes.

3. Nas paredes dos ossos parietais, tanto na esquerda como na direita, apareceram cabelos colados à superfície óssea. A análise destes cabelos não dá para pensar num indivíduo de raça caucasiana como se pretendera. Contudo, no estado actual das investigações constata-se que os referidos cabelos corresponderiam a um indivíduo de raça indígena da América do Sul, restando por precisar ainda se corresponder à etnia guarani ou quíchua.

4. A dentição estava quase completa, notando-se somente a falta de um dos dentes pré-molares na mandíbula inferior esquerda. Alem disso, chamamos a atenção de quem isto fosse tomar como prova pericial que nem a dentição da mandíbula superior nem a da inferior corresponderam com os registos estomatológicos consultados em referência.

5. As inserções musculares deixaram traços muito marcados nas regiões laterais do osso frontal, no ramo vertical da mandíbula superior e no osso occipital. Partindo como referência obrigada destas inserções tendinosas, tendo em consideração a estrutura óssea de todo o crânio, e seguindo para isso o método descrito pelo Professor Vance da Universidade de Massachusset, chegou-se a uma reconstrução quase completa da massa muscular do finado. A estrutura das partes brandas (nomeadamente orelhas e asas do nariz) reconstruíram-se tendo em valor a largura dos cornetos nasais, a estrutura do osso maxilar superior e a orientação e configuração dos ossos temporais. Esta reconstrução (faltante ainda por completar a cor da pele e a dos olhos) permite descartar a hipótese de que o indivíduo em questão fosse de raça branca, o que concorda com as observações referidas no ponto três deste relatório.

6. As paredes inferiores das órbitas sofreram uma erosão muito intensa, nomeadamente a do olho esquerdo. Isto levou a pensar que a composição das gravas no lugar do enterramento tinha uma muito alta acidez. Fizeram-se análises de flúor no conteúdo dos ossos, tirando-se como conclusão que o enterramento original se teria produzido há quando menos trezentos anos. Descartou-se a presença de vermes ossíferos que puderam ser os responsáveis tanto da destruição das paredes da órbita como das lâminas crivosas do osso etmóides, que também sofreram importante deterioração.

7. Analisado o conteúdo do interior do crânio destacara uma bola de terra que circundava um cristal de forma ovóide, com toda probabilidade um olho de vidro. Esta circunstância explicaria a profunda erosão numa das órbitas. Mesmo assim, tendo em consideração o mal estado das duas bases das órbitas, seria muito aventurado dizer em qual delas se albergava o referido olho de vidro, que curiosamente é de cor verde.

8. As análises genéticas realizadas sobre o material orgânico encontrado no crânio não foram concludentes ao não ter uma amostra certa de qualquer substância orgânica do referido Afonso Daniel Rodríguez Castelao com a que fazer uma comparação dos resultados obtidos pelas nossas investigações.

CONCLUSÕES
O grupo especial forense da Ilustre Academia das Ciências de Portugal CERTIFICA pelo presente relatório o seguinte:

1. Existem fundamentações bastantes e concludentes para afirmar que o crânio que nos fora entregue para análise e avaliação forense não pertence a Afonso Daniel Rodríguez Castelao. Não existindo a mais mínima hipótese de que o referido crânio pudera ser de um indivíduo caucasiano de raça branca. Além disso, a fórmula dentária observada não é coincidente com a fórmula dentária do falecido registada nos arquivos consultados ao efeito.

2. Há provas que levam a concluir, sem dúvida nenhuma, que o referido crânio bem pode pertencer a um indígena da América do Sul.

3. Com certidão, e sem que pudesse existir a mais mínima dúvida, o enterramento não é recente, datando-se em trezentos-quatrocentos anos.

Por todo o anteriormente EXPOSTO e para quem corresponda analisar este caso, assinamos o presente relatório a 27 de maio de 2000. (Seguem assinaturas dos doutores Alexandre Sousa Marques, do Departamento de Anatomia da Faculdade de Medicina de Lisboa; Josias de Mota, do Instituto de Medicina Legal; e Taviana Viterbo, do Instituto de Ciências Bio-Médicas).

P., que fora mudando de cor e de atitude perante a leitura do relatório, ficou pampo, de olhar congelado e ríctus espástico. O tenente Pecorelli, preocupado pelo aspecto do seu visitante, quis tirá-lo daquele estado catatónico.

— O senhor deseja qualquer coisa? Um copo de água… um café?

P. acordou como saindo de um abismo sem fundo.

— Preciso telefonar a Lisboa. E também um café. Sim, um café bem forte.

Leia o capítulo 10 por Luís Cardoso de Noronha

Xavier Queipo

Nasceu em Compostela, na Galiza, em 1957. Biólogo e escritor, vive e trabalha em Bruxelas desde 1989. É autor dos vários romances Malaria sentimental (1999), Papaventos (2001) e Extramunde (2011, prêmios Xerais, Arcebispo S. Clemente e Álvarez Blázquez), entre outros. Também publicou livros de contos, poemas, ensaios, infanto-juvenis e narrativas breves, como O ladrón de esperma (2002, Prémio Café Dublín), Os ciclos do bambú (2005) e Pegadas (2006). Realizou traduções de Conrad, Hervé Guibert, Amin Maalouf, Joyce e Foster Wallace.

Rascunho