A Carambaia publica uma nova tradução do livro de estreia da americana Carson McCullers (1917-1967), que saiu originalmente em 1940, quando a escritora tinha 23 anos. O coração Ć© um caƧador solitĆ”rio Ć© colocado com frequĆŖncia em listas dos melhores romances em lĆngua inglesa do sĆ©culo 20.
A obra aborda personagens Ć margem da sociedade. Num mosaico de personagens que pulsam profunda humanidade em seus desajustes a um meio pobre e desigual, o romance causou impacto imediato na crĆtica ā tanto por sua maturidade de estilo quanto pelas temĆ”ticas ainda pouco exploradas Ć Ć©poca ā ao reconstruir a vida de uma pequena cidade do sul dos Estados Unidos Ć s vĆ©speras da eclosĆ£o da Segunda Guerra Mundial.
A figura central Ć© um trabalhador surdo, John Singer, com quem os outros personagens principais estabelecem conexƵes de admiração, curiosidade, confidĆŖncia, alĆ©m de traƧos de incompreensĆ£o. Em torno de Singer gravitam Mick, uma adolescente andrógina, apaixonada por mĆŗsica, em transição entre as molecagens da infĆ¢ncia e a descoberta da sexualidade; um mĆ©dico negro, Benedict Copeland, voltado ao atendimento de sua comunidade e bravo defensor da justiƧa para seu povo; Biff Brannon, dono de um cafĆ© onde se reĆŗnem as pessoas da vizinhanƧa; e um frequentador beberrĆ£o, Jake Blount, revoltado com as injustiƧas do mundo e obstinado por contar āa verdadeā a todos que cruzam o seu caminho.
Na rede sutil tecida por McCullers encontramos o retrato do Sul marcado pelo racismo, enraizado desde a escravidĆ£o, em paralelo Ć s notĆcias longĆnquas das atrocidades cometidas pelo nazismo. Essa configuração tambĆ©m implica Singer, que Ć© judeu. As relaƧƵes com os representantes do Estado sĆ£o conflituosas e, num dos casos, trĆ”gicas.
O escritor Richard Wright, primeiro autor negro a publicar um best-seller nos Estados Unidos, observou que McCullers foi quem criou pela primeira vez, entre os escritores brancos, personagens negros com profundidade, que ocupam lugar central na narrativa.
O coração Ć© um caƧador solitĆ”rio Ć© povoado por famĆlias de muitos filhos ou pessoas isoladas, como os personagens do pintor Edward Hopper. Todos sĆ£o, de um modo ou de outro, solitĆ”rios batalhadores guiados por suas necessidades bĆ”sicas, mas principalmente por suas ideias e emoƧƵes.
Singer, por exemplo, dedica-se intensamente a seu melhor amigo, outro homem surdo, internado em um asilo de pacientes de doenƧas mentais. A relação de ambos, ambĆgua, promove mais uma camada a esse complexo personagem.