🔓 Youtuber de batons

Quando o batom é o ponto central na transformação estética radical
Ilustração: Thiago Lucas
23/03/2023

E, finalmente, aconteceu.

Uma pessoa que ainda não tinha me visto magr… err, não, pera. Uma pessoa que ainda não tinha me visto fora da faixa da obesidade simplesmente não me reconheceu.

Fiquei com um misto de sentimentos mas, de uma forma geral, a balança foi positiva.

Não me dei o trabalho de falar meu nome. Gostei do anonimato. Uma vibe meio identidade secreta do super-herói. Alguém aí falou Arlequina? É, ok, talvez, quem estou querendo enganar?

A bem da verdade, não foram apenas os quilos a menos. Foram também o batom a mais, os óculos a menos, o vestido inusitado, as botas, os anéis, os brincos, o colar, a meia-calça e o cabelo mais curto. Até pouco tempo atrás eu me vestia como uma caricatura de uma caminhoneira. Como se não bastasse, troquei também de companheiro desde a última vez que meu interlocutor me viu, uns bons anos atrás. A pobre alma não tinha chances.

Os óculos voltarão, assim que a ótica terminar o serviço. E, com ele, o mundo em foco. Me questiono se perceber o mundo, esse nosso mundinho aqui, é algo mesmo desejável. Nina acha que é, porque eu tropeço nela toda hora. Na dúvida, a gente escuta o cachorro, sempre.

O restante veio para ficar. Agora eu sou a louca do batom. De aniversário, meu pai me deu batons de todas as cores disponíveis da marca que eu gosto, daquelas que não saem, que resistem ao apocalipse. Eu gosto desse porque a boca não fica parecendo um papel pega-mosca. Troco de cor duas vezes enquanto me arrumo só porque sim, porque posso. Estou rica, ostentando.

Nina não dá a mínima para batons.

Na volta para casa, namorado toca violão. Rapidamente somem as botas, os anéis, os brincos, o colar, a meia-calça e o vestido. O cabelo bagunça.

Tem uma coisa em homem que toca um instrumento e canta as músicas que você gosta, que assim, sei lá, gente.

Ando convencida de que pelo menos metade dos músicos escolheu essa profissão quando descobriu que é afrodisíaca. A outra metade, sendo otimista, realmente por amor à música.

O batom permanece intacto, impávido, imóvel.

Namorado também não dá a mínima para batons mas sugere, brincando, que eu comece um canal no Youtube no assunto. Não preciso de mais um projeto na vida, mas considerei a ideia na cabeça por alguns minutos.

O canal se chamaria, com toda certeza, Carolip.

(*) para os curiosos, o batom é o Power Stay. Ei, Avon, patrocina o Rascunho!

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

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