šŸ”“ Uma ruptura radical

Conversa com Stephanie Borges sobre como novos olhares a respeito do mundo podem mudar paradigmas enraizados na literatura, na religião, na cultura e nos costumes
Ilustração: Carolina Vigna
01/02/2021

Conversa com Stephanie Borges

1.
Carola: Me lembro, eu estava na livraria e vi teu livro numa bancada, comprei na hora. O título Talvez precisemos de um nome para isso aponta para a necessidade de transformação, mudança de paradigma não só na literatura, mas na nossa forma de falar o mundo, de descrevê-lo, que é também a nossa maneira de habitar esse espaço. O título do seu livro foi me acompanhando. Depois, quando cheguei em casa, comecei a ler e foi uma experiência muito impactante. Você transita entre vÔrias linguagens, tons, intensidades, saberes. Como quem dança. Uma dança outra. Copio aqui um trecho:

(…)
talvez antes:
sim, precisa pedir
não é exótico
na dúvida se sua opinião pode ser ofensiva apenas sorria

uma das caracterĆ­sticas
que revelam a saĆŗde
Ć© o brilho

não confunda
com retoques fotogrƔficos
ou a ilusão nos primeiros dias de química
o formol cai bem aos mortos
mas a indústria é ótima com eufemismos

a progressiva de chocolate
a progressiva marroquina
a progressiva de botox
a progressiva americana
a progressiva inteligente

Lembrando sempre que a confianƧa no progresso
deu ruim no sƩculo 20
(…)

E fiquei pensando na palavra progresso, esse tempo linear rumo a lugar nenhum. Teu livro tem um subtĆ­tulo: [ou o poema de quem parte]. Pensando nisso, na partida, que outros tempos Ć© possĆ­vel inventar/recuperar?

Stephanie: O tempo Ć© muito surpreendente. Tenho dificuldade em dar tĆ­tulos aos meus poemas, e Talvez precisemos de um nome para isso me parecia brincar com o meu desconforto. O tĆ­tulo veio de um verso do primeiro poema, era algo presente em todo o processo de escrita, mas só defini semanas depois de terminar o livro. Eu quem precisava de tempo para entender como a questĆ£o da autodefinição, de buscar outras formas de pensar e se expressar estavam presentes nos poemas. Quando vi o livro pronto, achei que foi uma escolha feliz. Penso que a experiĆŖncia negra tem diferentes relaƧƵes com o tempo. De certa forma, a gente olha bastante para o passado — para as vidas dos nossos familiares, para aprender, preservar o que foi conquistado por outras geraƧƵes —, mas tambĆ©m nos preocupamos com os futuros individuais e o coletivo. Acho que esse processo de ressignificar ideias, acontecimentos, imagens, Ć© uma forma de inventar outros tempos. Tem um orĆ­kƬ, um tipo de poema ou aforismo para refletirmos sobre as caracterĆ­sticas dos OrixĆ”s, que diz: ā€œExu matou um pĆ”ssaro ontem com uma pedra que atirou hojeā€. Ɖ uma experiĆŖncia totalmente diferente do tempo, a ideia de que algo do passado pode ser mudado agora. Mas nĆ£o Ć© isso que a gente faz quando toma atitude no presente que impede que o passado se repita? NĆ£o sei se Ć© o caso de recuperar o tempo, mas de mudarmos nossa relação com ele. Vivemos um momento de muito imediatismo, aceleração, a sensação de que estamos sempre apressadas ou atrasadas. ƀs vezes acho que parte do ataque do capitalismo neoliberal Ć  nossa subjetividade passa por criar essa sensação de que nunca hĆ” tempo suficiente, e aĆ­ nĆ£o nos perguntamos: com o que eu gasto meu tempo? Partir Ć© uma ruptura em vĆ”rios sentidos, tambĆ©m Ć© um movimento. Eu pensava muito esses poemas como um deslocamento, um percurso. VocĆŖ fala de uma danƧa, nĆ£o tinha me ocorrido, mas tambĆ©m pode ser. ƀs vezes penso que esse livro só foi possĆ­vel por causa de vĆ”rias rupturas. Quando resolvi rejeitar a quĆ­mica do alisamento, as imagens de controle do corpo negro, uma poesia contemporĆ¢nea classe mĆ©dia voltada para escolas americanas e europeias, percebi que nĆ£o havia muitos modelos a seguir, o que de inĆ­cio era assustador mas tambĆ©m me permitia jogar com diversas linguagens e referĆŖncias. Eram caminhos que certamente nada tinham de lineares.

Carola: Talvez o passado (a memória) não seja muito diferente de um livro que a gente escreveu. Achamos que escrevemos determinada coisa, mas um dia, muitos anos depois, nos damos conta que hÔ ali outros significados também, leituras que nem imaginÔvamos, e que transformam tudo, o passado, o presente, e o futuro da própria narrativa. Pensando nisso, o oríkì que você citou (lindo!) tem muito a ver com essa linguagem que nunca deixa de se escrever, que não se esgota num único significado, e que décadas, às vezes séculos depois, volta, nos permitindo ressignificar toda a história (aquela que imaginÔvamos encerrada). Seja ela num nível pessoal, cultural ou literÔrio. Você falou sobre o ataque do capitalismo neoliberal, concordo totalmente, e talvez entre as tantas falÔcias esteja a ideia de que não é possível reescrever o passado, como se ele fosse uma espécie de monólito (tipo um livro de História), e existisse descolado do presente, e sabemos que não é assim, ou ao menos, começamos a descobrir. Quanto a partir, me identifico muito com esse movimento, talvez seja esse o meu leitmotiv pessoal (risos). Partir é uma ruptura radical, uma ruptura com quem achÔvamos que éramos e uma porta aberta para o futuro, para quem podemos nos tornar. HÔ nisso uma enorme instabilidade, ainda não nos tornamos, mas jÔ não somos quem éramos antes, habita-se então essa espécie de ante-sala, um lugar que pode trazer grande angústia, esse não saber, mas que também traz o inesperado, a potência do que ainda não pensamos. Partir talvez seja a única forma possível de voltar. Sinto que o seu livro constrói esse arco, essa pirueta.

2.
Carola: Passei grande parte da minha vida de escritora ouvindo a frase ā€œtudo jĆ” foi dito, todas as histórias jĆ” foram contadasā€. Quando na verdade Ć© justamente o contrĆ”rio, a maior parte das histórias ainda nĆ£o foi contada. Ɖ impressionante o quanto certos discursos estavam entranhados na cultura. A gente vive uma Ć©poca muito assustadora, terrĆ­vel, e ao mesmo tempo, talvez pela primeira vez, a crueldade de muitos discursos considerados normais tenham vindo Ć  tona.

Stephanie: Sim! Ɖ surpreendente que tenhamos demorado tanto para perceber que todas as histórias jĆ” contadas vinham de um ponto de vista muito especĆ­fico, com um outra exceção para confirmar a regra. Eu me pergunto muito se o desinteresse das pessoas pela leitura tem relação com o fato de elas nĆ£o se verem nas histórias que lhes foram apresentadas, com a forma como se fala de livros e literatura. Comecei a me preocupar em ler mais autoras negras hĆ” uns cinco, seis anos, e percebi que a menos que a aparĆŖncia dos personagens fosse descrita, eu imaginava todo mundo branco. A gente mal se dĆ” conta da violĆŖncia disso atĆ© comeƧar a refletir a respeito. Embora eu soubesse que o mundo Ć© diverso, que conviva com pessoas bem diferentes, demorou atĆ© eu entender um duplo incĆ“modo — por um lado nĆ£o me reconhecia, nem as mulheres negras com quem convivo, nas personagens sofridas, ou sempre fortes, exemplo de superação, e por outro lado vĆ”rias das coisas consideradas universais, relevantes, me diziam pouco — demorei para entender que essas histórias sequer consideravam uma mulher negra como um personagem interessante, com questƵes a serem exploradas. Antes nĆ£o se debatia abertamente como essas eram narrativas de pontos de vista masculinos, brancos, europeus, estadunidenses, eram cheias de pontos cegos em relação a humanidade de quem escapa Ć  essa norma. Ɖ claro que posso me identificar com alguns aspectos dessas histórias, mas hoje me parece mais fĆ”cil admitir que outras histórias me interessam mais e quero encontrar mais livros escritos por mulheres, pessoas negras, LGBTQIA, em portuguĆŖs. Isso Ć© um avanƧo. SĆ£o realmente tempos terrĆ­veis, mas acho que muitos dos problemas que enfrentamos hoje, o ressurgimento dos fascismos, a crise climĆ”tica, o racismo e xenofobia, as violĆŖncias de gĆŖnero, a pandemia, sĆ£o a evidĆŖncia de que precisamos de mudanƧas profundas. Isso nĆ£o Ć© fĆ”cil, nĆ£o existe uma receita a seguir. HĆ” questƵes urgentes, que podem ser resolvidas com mais agilidade — como o combate Ć  desigualdade —, mas outras precisam de tempo, porque sĆ£o transformaƧƵes na maneira como pensamos, nos nossos hĆ”bitos, como nos relacionamos com as pessoas. Vejo muito desse retrocesso, o negacionismo, esse ódio escancarado como tentativas de impedir as mudanƧas que melhorariam a vida das pessoas mais vulnerĆ”veis, mas acredito que algumas dessas mudanƧas nĆ£o podem ser impedidas. As forƧas do atraso estĆ£o aĆ­ tentando sustentar o patriarcado, a destruição dos recursos naturais para dar lucro, mas existem muitas disputas acontecendo, em muitas frentes. Ɖ difĆ­cil viver tudo isso, mas acho que algumas coisas só podem ser mudadas quando reconhecemos os problemas, e eles estĆ£o tĆ£o óbvios que estĆ£o recorrendo ao negacionismo para sustentar seus interesses.

Carola: Sim, o sistema capitalista-colonial constitui um sujeito (homem branco hĆ©tero, etc.) como voz central, aquilo que Ć© considerado ā€œuniversalā€ (Ć© tĆ£o sintomĆ”tica a escolha desse adjetivo, nĆ£o?), e todas as demais vozes sĆ£o obrigadas a se articular a partir dessa norma, sendo que quanto mais afastada se estĆ” desse centro, maior Ć© o apagamento, o silenciamento, a invisibilidade. E se a pessoa ā€œnĆ£o existeā€ no mundo real, ela tambĆ©m nĆ£o vai existir na literatura (que costuma ser, de todas as artes, a mais conservadora em suas instituiƧƵes). Fiquei pensando na existĆŖncia de alguĆ©m como a Carolina Maria de Jesus, seu surgimento, sua voz, e a forma como ela foi tratada pelo sistema literĆ”rio, como a exceção (exótica) que só estava ali para confirmar a regra, e as discussƵes sobre se o que ela escrevia era ou nĆ£o era literatura. Me parece essencial nĆ£o só trazer outras vivĆŖncias para a literatura, mas tambĆ©m questionar o que definimos como literatura, boa literatura, incluindo o próprio cĆ¢none, se nĆ£o fizermos isso com urgĆŖncia, o sistema vai acabar sempre encontrando subterfĆŗgios para dizer: ā€œAh, que história interessante, mas… Ć© uma literatura menor ou Ć© uma literatura para crianƧas ou Ć© uma literatura de interesse puramente histórico ou Ć©tnico ou…ā€.

Stephanie: Quando li Quarto de despejo foi um choque. Ouvi falar do livro na faculdade de jornalismo, por causa do AudÔlio Dantas, mas só encontrei uma edição anos depois. E a primeira coisa que pensei foi na crueldade de não lermos Carolina Maria de Jesus nas escolas. Foi uma alegria quando o livro foi incluído em alguns vestibulares. O quanto se pode falar da criação literÔria, da capacidade de narrar, de norma culta e oralidade a partir daquele texto. Além de ser uma demonstração da mulher negra como sujeita, com seus sonhos, angústia e uma visão crítica de mundo. Uma obra que nos mostra como a leitura e a escrita criam espaço para humanidade de uma pessoa considerada invisível. Se Quarto de despejo fosse merecidamente considerado um clÔssico da literatura brasileira, quantas conversas importantes sobre a nossa sociedade seriam possíveis? Acho que a leitura de pontos de vista diferentes do homem branco de classe média nos fazem compreender outros modos de estar no mundo e a observar também as angústias que compartilhamos com as pessoas diferentes de nós. Embora não acredite que a literatura nos torne mais empÔticos ou tolerantes, acho que conhecer outras perspectivas alarga a nossa visão de mundo, o que não tem como isso ser ruim.

3.
Carola: Eu adoro ler escritoras-ensaístas (um gênero em geral tão masculino), uma das minhas preferidas é a Ursula K. Le Guin, talvez pela capacidade de resumir temas extremamente complexos de uma forma direta e acessível. Os escritos dela têm me ajudado a aprofundar ideias relativas à literatura como ferramenta de transformação de mundos. Especialmente no quesito imaginação (ou melhor, construção do imaginÔrio), ser capaz de imaginar outras possibilidades, ser capaz de imaginar o que ainda não existe, ser capaz de imaginar quem ainda não somos. Ela diz:

In America the imagination is generally looked on as something that might be useful when the TV is out of order. Poetry and plays have no relation to practical politics. Novels are for students, housewives, and other people who don’t work. Fantasy is for children and primitive peoples. Literacy is so you can read the operating instructions. I think the imagination is the single most useful tool mankind possesses. It beats the opposable thumb. I can imagine living without my thumbs, but not without my imagination. (…)

Stephanie: Eu tambĆ©m adoro escritoras-ensaĆ­stas. Ɖ um formato excelente para acompanharmos mulheres desenvolvendo suas ideias sobre diversos assuntos. Comecei a pensar sobre a construção do imaginĆ”rio quando comecei a ler sobre afrofuturismo. O Orlando Calheiros, amigo com quem faƧo o podcast, costuma dizer: ā€œĆ‰ mais fĆ”cil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismoā€. E isso me fez prestar atenção em como as histórias de ficção especulativa continuam reproduzindo as lógicas de escassez, da disputa pelo poder, de violĆŖncia de gĆŖnero. O mundo que conhecemos acabou, mas os filmes, os livros nos oferecem a jornada do herói que traz a esperanƧa de que tudo um dia volte a ser como era antes. Lendo romances de Ursula K. Le Guin, Octavia E. Butler, N.K. Jemisin, Nnedi Okorafor, percebi que essas autoras nos propƵem outras experiĆŖncias. Se acabou o mundo como conhecĆ­amos, como inventamos outras formas de viver? Ainda nĆ£o li os ensaios da Le Guin, mas concordo muito com essa reflexĆ£o de que a imaginação Ć© tratada como entretenimento, ou algo infantil, quando na verdade Ć© uma ferramenta importantĆ­ssima. Ɖ curioso porque as pessoas compreendem facilmente que a tecnologia, pesquisas cientĆ­ficas, invenƧƵes sĆ£o possĆ­veis por uma mistura da imaginação e do conhecimento cientĆ­fico. No entanto, quando falamos de imaginar um mundo sem racismo, sem machismo, acham que estamos falando de utopia. Eu me pergunto se existe uma confusĆ£o entre utopia e o paraĆ­so cristĆ£o, onde tudo seria simples e sem conflito. NĆ£o me interessa um lugar inalcanƧƔvel ou um paraĆ­so que só existe para quem sofreu bastante em vida. Penso no que a Audre Lorde chama de futuros possĆ­veis. Se olharmos com atenção, Ć© muito triste que hĆ” quem considere uma sociedade em que ninguĆ©m morra por ser negro, mulher, LGBT como algo inalcanƧƔvel. Imaginar um mundo em que a pessoas tenham vidas mais dignas Ć© fundamental para criarmos estratĆ©gias para mudar a nossa realidade. Um mundo sem crimes de ódio ainda vai ter conflito, discordĆ¢ncias, gente infeliz, mas sĆ£o problemas de outra ordem. O Ćŗltimo romance da Ursula K. Le Guin que li, A curva do sonho, Ć© a história de um homem cujos sonhos se tornam reais. Ele usa drogas, Ć© considerado louco e Ć© enviado para um tratamento psiquiĆ”trico. O mĆ©dico percebe que o sujeito estĆ” falando a verdade e decide usar a hipnose para induzir sonhos no paciente para mudar o mundo. HĆ” ótimas questƵes nesse livro sobre ā€œviver os sonhos dos outrosā€, mas Ć© muito impressionante como Le Guin mostra que nĆ£o existem soluƧƵes simples, mas a capacidade de sonhar impacta a nossa realidade. As ideias do mĆ©dico de um mundo cheio de ordem, de disciplina, de controle, logo descambam para uma realidade fascista: só hĆ” um jeito de viver, de pensar. Quando o protagonista consegue retomar o controle de seus sonhos, ele Ć© incapaz de sonhar com um mundo ā€œperfeitoā€, porque nĆ£o acredita em perfeição, mas sonha com uma realidade bem melhor que o seu ponto de partida antes de se tratar com o psiquiatra. Nós vivemos em tempos em que o pensamento binĆ”rio parece ter se agravado. AlĆ©m de as pessoas pensarem que só Ć© possĆ­vel ter duas opƧƵes — a distopia e a utopia —, ainda existe esse discurso perverso de polarização. Mas quem lucra com a nossa dificuldade de imaginar vĆ”rios caminhos, uma vida menos violenta?

Carola: Eu não tinha lido a Octavia E. Butler ainda, li Kindred: laços de sangue e depois A parÔbola do semeador e A parÔbola dos talentos. HÔ muito tempo uma leitura não me impactava tanto, foram livros que, de certa forma, transformaram a minha maneira de pensar a ficção, me ajudaram a aprofundar uma série de ideias. Em Kindred, por exemplo, o fato de ela levar a protagonista, uma mulher negra e jovem, dos Estados Unidos contemporâneo para os Estados Unidos escravocrata do século 19, faz com que a experiência seja não aquela do distanciamento histórico ou intelectual (ah, que terrível era naquela época), mas uma experiência do corpo, que nos obriga a vivenciar a escravidão a partir do nosso corpo contemporâneo, ou seja, através da fantasia ela cria um deslocamento impossível no mundo real, mas que permite uma anÔlise muito mais profunda e intensa. E por outro lado, como você disse, a capacidade de sonhar impacta a nossa realidade, se não formos capazes de imaginar outros futuros, como seremos capazes de concretizÔ-los? Seria interessante pensar em por que motivos o cânone literÔrio moderno se prende tanto ao realismo.

Stephanie: Acho importante a gente observar esse contraste, enquanto algumas autoras se interessam em explorar as possibilidades da fantasia para tratar de questões políticas, da experiência de corpos que não têm plenos direitos, o status quo que se pretende universal se apega ao realismo. Isso me faz pensar em como se pretende definir o que real ou realista e para quem.

4.
Carola: Adoro o podcast que você faz com o Orlando Calheiros, o Benzina, sou super fã. No episódio sobre Exu, que é um dos meus preferidos, vocês falam, entre outras coisas, sobre a criação (do mundo) segundo as religiões de matriz africana, que ao contrÔrio do catolicismo, segundo o qual a criação acontece ex-nihilo, nas religiões de matriz africana, tudo jÔ existe enquanto potência (no espaço do vazio absoluto/caos do qual Exu é o guardião). Acho linda essa imagem, e muito próxima da experiência de criação literÔria. Talvez as ideias existam enquanto potência numa espécie de inconsciente coletivo, e ao escrever, a gente escreve com a técnica, sim, do sujeito, mas também com uma série de saberes que não são apenas nossos. Talvez exista uma conexão entre as religiões monoteístas e a ideia de sujeito na cultura ocidental.

Stephanie: Ah, fiquei muito feliz de saber que você gosta do Benzina! Sim, acho que existe semelhança entre a ideia de uma criação em que as potências estão misturadas no caos e são elaboradas na criação do mundo e na escrita. De certa forma entre a prÔtica, a técnica e a curiosidade, a gente consegue acessar essas ideias que estão por aí e trazê-las para esse plano.

Certas ideias como a de originalidade estĆ£o muito ligadas a essa visĆ£o judaico-cristĆ£ da existĆŖncia em que havia o nada, o princĆ­pio era o verbo e eis que tudo foi criado em sete dias. Quando na verdade, quem se envolve com processos criativos sabe que Ć© preciso juntar referĆŖncias, aprender com outras pessoas, tentativa e erro, muita prĆ”tica atĆ© a gente reconhecer ā€œopa, esse poema funcionaā€, ā€œaqui tem uma história, preciso descobrir um jeito de contĆ”-laā€. A ideia da criação como algo solitĆ”rio ou sofrido tambĆ©m faz parte da lógica cristĆ£. Escrever tem momentos solitĆ”rios, mas isso nĆ£o impede que mantenhamos diversas trocas, com os autores que lemos, com os mĆŗsicos que estamos ouvindo, com amigos que nada tem a ver com a nossa produção. Escrever e editar exigem concentração, mas antes disso, o momento de acumular as ideias pode ser povoado por muita gente. Quando comecei a me aproximar das religiƵes de matriz africana, a perspectiva de que a criação envolve vĆ”rios OrixĆ”s, tentativa e erros, que o mundo nĆ£o ficou pronto de uma vez foi muito reconfortante. Cada OrixĆ” tem o seu papel e contribui de alguma maneira para que o mundo e a humanidade existam. HĆ” aprendizados com o processo. Me parece jeito menos solitĆ”rio e menos duro de encararmos as coisas. Gravar um podcast foi encontrar um processo criativo compartilhado que me tira desses momentos de concentração e silĆŖncio de traduzir, ler e escrever. Eu e Orlando acabamos trocando muitas sugestƵes de leituras, de sĆ©ries, filmes, ā€œolha isso aqui, acho que rende uma pautaā€.

Carola: Acho muito bacana essa ideia da tentativa e erro. VocĆŖ fala em processo, talvez seja esse um dos principais pontos, em geral esquecemos de que se trata de um processo para focar apenas num ā€œresultado finalā€. Talvez isso tenha alguma relação com a ideia de que hĆ” um inĆ­cio, um meio e um fim, quando, me parece cada vez mais, esses aspectos do processo acontecem simultaneamente e se misturam. E tambĆ©m com a ideia de um Ćŗnico deus, um deus que afastou de si a imperfeição, a falta, criando assim um mundo binĆ”rio, dividido em bem e mal, homem e mulher, etc. Sinto que nĆ£o seremos capazes de pensar outros futuros se nĆ£o ouvirmos com muita atenção o que nos dizem as religiƵes de matriz africana, assim como as cosmogonias dos povos originĆ”rios.

Stephanie: Sim, nós precisamos nos abrir para essas outras formas de pensar e entender nosso mundo. Nós convivemos com o erro, o inacabado, o imperfeito o tempo todo, mas sempre sob esse viĆ©s de algo ruim, negativo, quando na verdade tudo isso apenas Ć© parte da existĆŖncia. Ɖ curioso, porque se a gente pensar nos livros, a gente termina de escrever, mas ele só fica pronto quando alguĆ©m lĆŖ e participa, se apropria daquelas palavras. EntĆ£o de certa forma, temos um produto acabado, mas que nĆ£o se esgota com o fim do processo de escrita, edição, impressĆ£o. Um livro Ć© algo que se reinventa a cada contato com um novo leitor.

5.
Carola: Literatura e afetos (tanto no sentido de conexão afetiva quanto daquilo que nos afeta, que nos transforma), quais fios são possíveis tecer aqui?

Stephanie: Muitos, porque escrever é um reflexo de ser leitora e os livros mudaram a minha vida. Do mais bÔsico, que era espantar o tédio numa infância e adolescência sem internet, saciar um pouco da minha curiosidade, até me dar um vocabulÔrio emocional para lidar com o luto, a solidão, relações amorosas, separação. Talvez por eu ter passado muito tempo lendo sem a menor distinção entre o que era literatura e o que era entretenimento, pois lia por prazer, eu tenha criado muito cedo a sensação de que hÔ livros para momentos diferentes, mas sempre tem um livro que pode ser uma boa companhia. Então a literatura para mim estÔ profundamente ligada aos afetos, porque vÔrios autores expandiram a minha visão de mundo, as possibilidades que eu imaginava para minha vida. O meu livro jÔ me proporcionou tantos encontros, boas conversas, alegrias, que só consigo pensar que os fios que ligam a literatura e os afetos são fios longos, espiralados, cheio de voltas e texturas, como o poema de Talvez precisemos de um nome para isso.

Carola: Me lembrei da Gloria AnzaldĆŗa. HĆ” uma passagem em Light in the dark, que diz o seguinte:

I propose a new perspective on imagination, to healing, and to shamanic spirituality. Art, reading and writing are image-making practices that shape and transform what we are able to imagine and perceive.

Eu gosto muito desse trecho, nĆ£o só no que diz respeito Ć  imaginação como ferramenta de criação de mundos, mas porque ela junta aspectos que costumam ser vistos de forma separadas: imaginação, espiritualidade/cura e arte. Talvez ā€œbuscar um nome para issoā€ seja tambĆ©m uma forma de nomear o sintoma que estava em silĆŖncio.

Stephanie: Nossa, que trecho maravilhoso!

6.
Carola: Outro dia numa padaria num bairro da zona sul do Rio de Janeiro, morreu um homem em situação de rua. Ele entrou lÔ para pedir ajuda porque estava vomitando sangue e morreu, sem que lhe dessem qualquer ajuda ou atenção, morreu e o corpo ficou lÔ, coberto por um saco de lixo ou algo assim. Ele ficou lÔ por duas horas. Enquanto isso, a padaria continuou funcionando normalmente, as pessoas tomando seu café, comendo seu pão na chapa, talvez olhando as novidades no celular. O mais assustador é que não se trata de um acontecimento isolado, a gente vive numa sociedade em que algumas pessoas existem e outras não, são corpos invisíveis, aliÔs, é justamente isso o que nos constituiu como sociedade. Talvez a grande batalha seja a batalha por existir. Que função pode ter a literatura enquanto ferramenta (arma) para fora desse pesadelo?

Stephanie: O Ailton Krenak, em Ideias para adiar o fim do mundo, diz que precisamos ser claros sobre quais fins de quais mundos a gente estĆ” falando quando pensamos em adiar o fim do mundo, porque vĆ”rios mundos jĆ” se acabaram, mas por outro lado hĆ” mundos que precisam acabar. Um mundo em que uma pessoa nĆ£o recebeu ajuda, morre e a padaria continua aberta e os clientes nĆ£o vĆ£o embora Ć© um mundo que precisa acabar para que outro possa surgir. Essa história ilustra tudo que hĆ” de errado na nossa sociedade atualmente: o desrespeito com a vida, a desigualdade, a importĆ¢ncia dada ao dinheiro, a falta de solidariedade ou o medo de ajudar alguĆ©m, a indiferenƧa. E Ć s vezes penso que essa capacidade de relativizar o valor da vida, da humanidade dos outros, Ć© uma heranƧa que a gente carrega de quase 400 anos de escravidĆ£o. Porque as leis mudaram, mas as ideias de que determinadas vidas sĆ£o descartĆ”veis fazem parte do nosso dia a dia. As pessoas leem as notĆ­cias, fazem um post nas redes sociais #luto #vidasnegrasimportam e continuam tomando seus cafĆ©s. Ɖ difĆ­cil falar de uma função/papel da literatura de modo geral, ainda mais durante uma pandemia, com um governo que se omite para deixar as pessoas morrerem. Só consigo pensar que a literatura nesse momento Ć© uma ferramenta que me ajuda a criar espaƧos fora desse horror. NĆ£o falo de um escapismo para ficção (poderia ser), mas um ajuste de perspectiva, de que esse Ć© um momento horrĆ­vel, mas a humanidade jĆ” produziu e passou por outros momentos horrĆ­veis antes, entĆ£o a gente precisa se apegar ao que pode fazer para manter saudĆ”vel. Para mim, ler, escrever, traduzir sĆ£o formas de elaborar o luto coletivo, o medo, o trauma, mas tambĆ©m ajudam a canalizar a raiva, a frustração, a sensação de impotĆŖncia. A Audre Lorde mudou a minha vida nĆ£o só com as traduƧƵes que fiz dos ensaios e da poesia dela, mas porque ela nos lembra que a raiva Ć© um sentimento legĆ­timo diante da injustiƧa, da desigualdade, mas que precisa ser bem usada para que nĆ£o se volte contra nós. Atualmente só consigo pensar que a literatura Ć© uma ferramenta e uma arma para criar possibilidades e dar vazĆ£o Ć  minha raiva de maneira construtiva.

Carola: Sim, com certeza, as marcas da escravidĆ£o estĆ£o por toda parte: desde violĆŖncias digamos assim, mais ā€œsutisā€, como a arquitetura dos apartamentos com o ā€œquartinho de empregadaā€ e Ć”rea de serviƧo, o prĆ©dio com sua entrada social e outra de serviƧo, as babĆ”s uniformizadas acompanhando as famĆ­lias nos almoƧos de domingo, a empregada que Ć© ā€œcomo se fosse da famĆ­liaā€, atĆ© aspectos mais abertamente violentos como o extermĆ­nio de parte da população, um genocĆ­dio que nunca teve fim. E para que isso tudo possa funcionar, Ć© necessĆ”rio criar recursos psĆ­quicos, nĆ£o só para tornar possĆ­vel a violĆŖncia mas tambĆ©m para usufruir dela, e esse recurso Ć© a invisibilidade, um outro que ao mesmo tempo existe (para servir) e nĆ£o existe (como ser humano). Quando vocĆŖ diz que a Audre Lorde mudou a sua vida, pra mim, Ć© esse acontecimento a principal ferramenta, seja ela qual for. Outro dia eu reli A bolsa amarela, da Lygia Bojunga, e fiquei impressionada ao perceber o quanto aquele livro tinha me transformado, o quanto ele estĆ” gravado em mim, na pessoa e na escritora que sou. E o quanto eu encontrei ali, num livro, ainda na infĆ¢ncia, as palavras para dizer o que eu ainda nem sabia que sabia, mas que sempre esteve em mim, e me senti menos só. Talvez esteja aĆ­, nessa capacidade de produzir afetos, conexƵes, uma das principais potĆŖncias da literatura. Talvez a literatura possa nos ajudar a enxergar aquilo que atĆ© entĆ£o estava invisĆ­vel, dentro e fora de nós.

Stephanie: Seu comentĆ”rio me lembrou do inĆ­cio do ensaio A poesia nĆ£o Ć© um luxo, da Audre Lorde, que estĆ” em IrmĆ£ outsider: O tipo de luz sob a qual examinamos nossas vidas influencia diretamente como vivemos, os resultados que obtemos e as mudanƧas que esperamos promover atravĆ©s dessas vidas. Ɖ nos limites dessa luz que formamos aquelas ideias pelas quais vamos em busca de nossa mĆ”gica e a tornamos realidade. Trata-se da poesia como iluminação, pois Ć© atravĆ©s da poesia que damos nome Ć quelas ideias que — antes do poema — nĆ£o tĆŖm nome nem forma, que estĆ£o para nascer, mas jĆ” sĆ£o sentidas. Essa destilação da experiĆŖncia da qual brota a verdadeira poesia faz nascer o pensamento, tal como o sonho faz nascer o conceito, tal como a sensação faz nascer a ideia, tal como o conhecimento faz nascer (antecede) a compreensĆ£o.

7.
Carola: Termino citando um trecho do Manifesto ciborgue, da Donna Haraway: ā€œPara trabalhar direito, nĆ£o temos necessidade de uma totalidade. O sonho feminista sobre uma linguagem comum, como todos os sonhos sobre uma linguagem que seja perfeitamente verdadeira, sobre uma nomeação perfeitamente fiel da experiĆŖncia, Ć© um sonho totalizante e imperialista. Nesse sentido, em sua Ć¢nsia por resolver a contradição, tambĆ©m a dialĆ©tica Ć© uma linguagem de sonho. Talvez possamos, ironicamente, aprender baseadas em nossas fusƵes com animais e mĆ”quinas como nĆ£o ser o Homem, essa corporificação do logos ocidentalā€.

Stephanie: Vou deixar aqui entĆ£o um trecho do texto Dizemos revolução, de Paul B. Preciado em Um apartamento em Urano: ā€œPrecisamos inventar novas metodologias de produção de conhecimento e uma nova imaginação capaz de confrontar a lógica da guerra, a razĆ£o heterocolonial e a hegemonia do mercado como lugar de produção do valor e da verdade. NĆ£o estamos falando de uma simples mudanƧa de regime institucional, de um deslocamento de elites polĆ­ticas. Falamos da transformação micropolĆ­tica dos ā€œdomĆ­nios moleculares da sensibilidade, da inteligĆŖncia e do desejoā€. Trata-se se modificar a produção se signos, de sintaxe, a subjetividade, os modos de produzir e reproduzir a vida. NĆ£o estamos falando apenas de uma reforma dos estados-naƧƵes europeus. NĆ£o estamos falando de mover a fronteira de lĆ” para cĆ”. De tirar um estado para instalar outro. Estamos falando de descolonizar o mundo (…). Estamos falando de modificar a ā€œTerrapolĆ­ticaā€.

Stephanie Borges
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1984. Ɖ jornalista, poeta e tradutora. Estreou em 2019 com o livro de poesia Talvez precisemos de um nome para isso, vencedor do PrĆŖmio Cepe de Literatura. Verteu para o portuguĆŖs o romance Um outro Brooklyn, de Jacqueline Woodson, e os ensaios e conferĆŖncias reunidos em IrmĆ£ outsider, de Audre Lorde, entre outros tĆ­tulos. MantĆ©m o podcast Benzina, em parceria com o antropólogo Orlando Calheiros.
Carola Saavedra

Ɖ autora, entre outros, dos romancesĀ Flores azuisĀ (eleito melhor romance pela Associação Paulista dos CrĆ­ticos de Arte), Paisagem com dromedĆ”rioĀ (PrĆŖmio Rachel de Queiroz na categoria jovem autor), O inventĆ”rio das coisas ausentes e Com armas sonolentas. Seus livros foram traduzidos para o inglĆŖs, francĆŖs, espanhol e alemĆ£o. EstĆ” entre os 20 melhores jovens escritores brasileiros escolhidos pela revista Granta. Desde 2019, Ć© professora e pesquisadora na Universidade de ColĆ“nia.

Rascunho