🔓 Uma ruptura radical

Conversa com Stephanie Borges sobre como novos olhares a respeito do mundo podem mudar paradigmas enraizados na literatura, na religião, na cultura e nos costumes
Ilustração: Carolina Vigna
01/02/2021

Conversa com Stephanie Borges

1.
Carola: Me lembro, eu estava na livraria e vi teu livro numa bancada, comprei na hora. O título Talvez precisemos de um nome para isso aponta para a necessidade de transformação, mudança de paradigma não só na literatura, mas na nossa forma de falar o mundo, de descrevê-lo, que é também a nossa maneira de habitar esse espaço. O título do seu livro foi me acompanhando. Depois, quando cheguei em casa, comecei a ler e foi uma experiência muito impactante. Você transita entre várias linguagens, tons, intensidades, saberes. Como quem dança. Uma dança outra. Copio aqui um trecho:

(…)
talvez antes:
sim, precisa pedir
não é exótico
na dúvida se sua opinião pode ser ofensiva apenas sorria

uma das características
que revelam a saúde
é o brilho

não confunda
com retoques fotográficos
ou a ilusão nos primeiros dias de química
o formol cai bem aos mortos
mas a indústria é ótima com eufemismos

a progressiva de chocolate
a progressiva marroquina
a progressiva de botox
a progressiva americana
a progressiva inteligente

Lembrando sempre que a confiança no progresso
deu ruim no século 20
(…)

E fiquei pensando na palavra progresso, esse tempo linear rumo a lugar nenhum. Teu livro tem um subtítulo: [ou o poema de quem parte]. Pensando nisso, na partida, que outros tempos é possível inventar/recuperar?

Stephanie: O tempo é muito surpreendente. Tenho dificuldade em dar títulos aos meus poemas, e Talvez precisemos de um nome para isso me parecia brincar com o meu desconforto. O título veio de um verso do primeiro poema, era algo presente em todo o processo de escrita, mas só defini semanas depois de terminar o livro. Eu quem precisava de tempo para entender como a questão da autodefinição, de buscar outras formas de pensar e se expressar estavam presentes nos poemas. Quando vi o livro pronto, achei que foi uma escolha feliz. Penso que a experiência negra tem diferentes relações com o tempo. De certa forma, a gente olha bastante para o passado — para as vidas dos nossos familiares, para aprender, preservar o que foi conquistado por outras gerações —, mas também nos preocupamos com os futuros individuais e o coletivo. Acho que esse processo de ressignificar ideias, acontecimentos, imagens, é uma forma de inventar outros tempos. Tem um oríkì, um tipo de poema ou aforismo para refletirmos sobre as características dos Orixás, que diz: “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que atirou hoje”. É uma experiência totalmente diferente do tempo, a ideia de que algo do passado pode ser mudado agora. Mas não é isso que a gente faz quando toma atitude no presente que impede que o passado se repita? Não sei se é o caso de recuperar o tempo, mas de mudarmos nossa relação com ele. Vivemos um momento de muito imediatismo, aceleração, a sensação de que estamos sempre apressadas ou atrasadas. Às vezes acho que parte do ataque do capitalismo neoliberal à nossa subjetividade passa por criar essa sensação de que nunca há tempo suficiente, e aí não nos perguntamos: com o que eu gasto meu tempo? Partir é uma ruptura em vários sentidos, também é um movimento. Eu pensava muito esses poemas como um deslocamento, um percurso. Você fala de uma dança, não tinha me ocorrido, mas também pode ser. Às vezes penso que esse livro só foi possível por causa de várias rupturas. Quando resolvi rejeitar a química do alisamento, as imagens de controle do corpo negro, uma poesia contemporânea classe média voltada para escolas americanas e europeias, percebi que não havia muitos modelos a seguir, o que de início era assustador mas também me permitia jogar com diversas linguagens e referências. Eram caminhos que certamente nada tinham de lineares.

Carola: Talvez o passado (a memória) não seja muito diferente de um livro que a gente escreveu. Achamos que escrevemos determinada coisa, mas um dia, muitos anos depois, nos damos conta que há ali outros significados também, leituras que nem imaginávamos, e que transformam tudo, o passado, o presente, e o futuro da própria narrativa. Pensando nisso, o oríkì que você citou (lindo!) tem muito a ver com essa linguagem que nunca deixa de se escrever, que não se esgota num único significado, e que décadas, às vezes séculos depois, volta, nos permitindo ressignificar toda a história (aquela que imaginávamos encerrada). Seja ela num nível pessoal, cultural ou literário. Você falou sobre o ataque do capitalismo neoliberal, concordo totalmente, e talvez entre as tantas falácias esteja a ideia de que não é possível reescrever o passado, como se ele fosse uma espécie de monólito (tipo um livro de História), e existisse descolado do presente, e sabemos que não é assim, ou ao menos, começamos a descobrir. Quanto a partir, me identifico muito com esse movimento, talvez seja esse o meu leitmotiv pessoal (risos). Partir é uma ruptura radical, uma ruptura com quem achávamos que éramos e uma porta aberta para o futuro, para quem podemos nos tornar. Há nisso uma enorme instabilidade, ainda não nos tornamos, mas já não somos quem éramos antes, habita-se então essa espécie de ante-sala, um lugar que pode trazer grande angústia, esse não saber, mas que também traz o inesperado, a potência do que ainda não pensamos. Partir talvez seja a única forma possível de voltar. Sinto que o seu livro constrói esse arco, essa pirueta.

2.
Carola: Passei grande parte da minha vida de escritora ouvindo a frase “tudo já foi dito, todas as histórias já foram contadas”. Quando na verdade é justamente o contrário, a maior parte das histórias ainda não foi contada. É impressionante o quanto certos discursos estavam entranhados na cultura. A gente vive uma época muito assustadora, terrível, e ao mesmo tempo, talvez pela primeira vez, a crueldade de muitos discursos considerados normais tenham vindo à tona.

Stephanie: Sim! É surpreendente que tenhamos demorado tanto para perceber que todas as histórias já contadas vinham de um ponto de vista muito específico, com um outra exceção para confirmar a regra. Eu me pergunto muito se o desinteresse das pessoas pela leitura tem relação com o fato de elas não se verem nas histórias que lhes foram apresentadas, com a forma como se fala de livros e literatura. Comecei a me preocupar em ler mais autoras negras há uns cinco, seis anos, e percebi que a menos que a aparência dos personagens fosse descrita, eu imaginava todo mundo branco. A gente mal se dá conta da violência disso até começar a refletir a respeito. Embora eu soubesse que o mundo é diverso, que conviva com pessoas bem diferentes, demorou até eu entender um duplo incômodo — por um lado não me reconhecia, nem as mulheres negras com quem convivo, nas personagens sofridas, ou sempre fortes, exemplo de superação, e por outro lado várias das coisas consideradas universais, relevantes, me diziam pouco — demorei para entender que essas histórias sequer consideravam uma mulher negra como um personagem interessante, com questões a serem exploradas. Antes não se debatia abertamente como essas eram narrativas de pontos de vista masculinos, brancos, europeus, estadunidenses, eram cheias de pontos cegos em relação a humanidade de quem escapa à essa norma. É claro que posso me identificar com alguns aspectos dessas histórias, mas hoje me parece mais fácil admitir que outras histórias me interessam mais e quero encontrar mais livros escritos por mulheres, pessoas negras, LGBTQIA, em português. Isso é um avanço. São realmente tempos terríveis, mas acho que muitos dos problemas que enfrentamos hoje, o ressurgimento dos fascismos, a crise climática, o racismo e xenofobia, as violências de gênero, a pandemia, são a evidência de que precisamos de mudanças profundas. Isso não é fácil, não existe uma receita a seguir. Há questões urgentes, que podem ser resolvidas com mais agilidade — como o combate à desigualdade —, mas outras precisam de tempo, porque são transformações na maneira como pensamos, nos nossos hábitos, como nos relacionamos com as pessoas. Vejo muito desse retrocesso, o negacionismo, esse ódio escancarado como tentativas de impedir as mudanças que melhorariam a vida das pessoas mais vulneráveis, mas acredito que algumas dessas mudanças não podem ser impedidas. As forças do atraso estão aí tentando sustentar o patriarcado, a destruição dos recursos naturais para dar lucro, mas existem muitas disputas acontecendo, em muitas frentes. É difícil viver tudo isso, mas acho que algumas coisas só podem ser mudadas quando reconhecemos os problemas, e eles estão tão óbvios que estão recorrendo ao negacionismo para sustentar seus interesses.

Carola: Sim, o sistema capitalista-colonial constitui um sujeito (homem branco hétero, etc.) como voz central, aquilo que é considerado “universal” (é tão sintomática a escolha desse adjetivo, não?), e todas as demais vozes são obrigadas a se articular a partir dessa norma, sendo que quanto mais afastada se está desse centro, maior é o apagamento, o silenciamento, a invisibilidade. E se a pessoa “não existe” no mundo real, ela também não vai existir na literatura (que costuma ser, de todas as artes, a mais conservadora em suas instituições). Fiquei pensando na existência de alguém como a Carolina Maria de Jesus, seu surgimento, sua voz, e a forma como ela foi tratada pelo sistema literário, como a exceção (exótica) que só estava ali para confirmar a regra, e as discussões sobre se o que ela escrevia era ou não era literatura. Me parece essencial não só trazer outras vivências para a literatura, mas também questionar o que definimos como literatura, boa literatura, incluindo o próprio cânone, se não fizermos isso com urgência, o sistema vai acabar sempre encontrando subterfúgios para dizer: “Ah, que história interessante, mas… é uma literatura menor ou é uma literatura para crianças ou é uma literatura de interesse puramente histórico ou étnico ou…”.

Stephanie: Quando li Quarto de despejo foi um choque. Ouvi falar do livro na faculdade de jornalismo, por causa do Audálio Dantas, mas só encontrei uma edição anos depois. E a primeira coisa que pensei foi na crueldade de não lermos Carolina Maria de Jesus nas escolas. Foi uma alegria quando o livro foi incluído em alguns vestibulares. O quanto se pode falar da criação literária, da capacidade de narrar, de norma culta e oralidade a partir daquele texto. Além de ser uma demonstração da mulher negra como sujeita, com seus sonhos, angústia e uma visão crítica de mundo. Uma obra que nos mostra como a leitura e a escrita criam espaço para humanidade de uma pessoa considerada invisível. Se Quarto de despejo fosse merecidamente considerado um clássico da literatura brasileira, quantas conversas importantes sobre a nossa sociedade seriam possíveis? Acho que a leitura de pontos de vista diferentes do homem branco de classe média nos fazem compreender outros modos de estar no mundo e a observar também as angústias que compartilhamos com as pessoas diferentes de nós. Embora não acredite que a literatura nos torne mais empáticos ou tolerantes, acho que conhecer outras perspectivas alarga a nossa visão de mundo, o que não tem como isso ser ruim.

3.
Carola: Eu adoro ler escritoras-ensaístas (um gênero em geral tão masculino), uma das minhas preferidas é a Ursula K. Le Guin, talvez pela capacidade de resumir temas extremamente complexos de uma forma direta e acessível. Os escritos dela têm me ajudado a aprofundar ideias relativas à literatura como ferramenta de transformação de mundos. Especialmente no quesito imaginação (ou melhor, construção do imaginário), ser capaz de imaginar outras possibilidades, ser capaz de imaginar o que ainda não existe, ser capaz de imaginar quem ainda não somos. Ela diz:

In America the imagination is generally looked on as something that might be useful when the TV is out of order. Poetry and plays have no relation to practical politics. Novels are for students, housewives, and other people who don’t work. Fantasy is for children and primitive peoples. Literacy is so you can read the operating instructions. I think the imagination is the single most useful tool mankind possesses. It beats the opposable thumb. I can imagine living without my thumbs, but not without my imagination. (…)

Stephanie: Eu também adoro escritoras-ensaístas. É um formato excelente para acompanharmos mulheres desenvolvendo suas ideias sobre diversos assuntos. Comecei a pensar sobre a construção do imaginário quando comecei a ler sobre afrofuturismo. O Orlando Calheiros, amigo com quem faço o podcast, costuma dizer: “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. E isso me fez prestar atenção em como as histórias de ficção especulativa continuam reproduzindo as lógicas de escassez, da disputa pelo poder, de violência de gênero. O mundo que conhecemos acabou, mas os filmes, os livros nos oferecem a jornada do herói que traz a esperança de que tudo um dia volte a ser como era antes. Lendo romances de Ursula K. Le Guin, Octavia E. Butler, N.K. Jemisin, Nnedi Okorafor, percebi que essas autoras nos propõem outras experiências. Se acabou o mundo como conhecíamos, como inventamos outras formas de viver? Ainda não li os ensaios da Le Guin, mas concordo muito com essa reflexão de que a imaginação é tratada como entretenimento, ou algo infantil, quando na verdade é uma ferramenta importantíssima. É curioso porque as pessoas compreendem facilmente que a tecnologia, pesquisas científicas, invenções são possíveis por uma mistura da imaginação e do conhecimento científico. No entanto, quando falamos de imaginar um mundo sem racismo, sem machismo, acham que estamos falando de utopia. Eu me pergunto se existe uma confusão entre utopia e o paraíso cristão, onde tudo seria simples e sem conflito. Não me interessa um lugar inalcançável ou um paraíso que só existe para quem sofreu bastante em vida. Penso no que a Audre Lorde chama de futuros possíveis. Se olharmos com atenção, é muito triste que há quem considere uma sociedade em que ninguém morra por ser negro, mulher, LGBT como algo inalcançável. Imaginar um mundo em que a pessoas tenham vidas mais dignas é fundamental para criarmos estratégias para mudar a nossa realidade. Um mundo sem crimes de ódio ainda vai ter conflito, discordâncias, gente infeliz, mas são problemas de outra ordem. O último romance da Ursula K. Le Guin que li, A curva do sonho, é a história de um homem cujos sonhos se tornam reais. Ele usa drogas, é considerado louco e é enviado para um tratamento psiquiátrico. O médico percebe que o sujeito está falando a verdade e decide usar a hipnose para induzir sonhos no paciente para mudar o mundo. Há ótimas questões nesse livro sobre “viver os sonhos dos outros”, mas é muito impressionante como Le Guin mostra que não existem soluções simples, mas a capacidade de sonhar impacta a nossa realidade. As ideias do médico de um mundo cheio de ordem, de disciplina, de controle, logo descambam para uma realidade fascista: só há um jeito de viver, de pensar. Quando o protagonista consegue retomar o controle de seus sonhos, ele é incapaz de sonhar com um mundo “perfeito”, porque não acredita em perfeição, mas sonha com uma realidade bem melhor que o seu ponto de partida antes de se tratar com o psiquiatra. Nós vivemos em tempos em que o pensamento binário parece ter se agravado. Além de as pessoas pensarem que só é possível ter duas opções — a distopia e a utopia —, ainda existe esse discurso perverso de polarização. Mas quem lucra com a nossa dificuldade de imaginar vários caminhos, uma vida menos violenta?

Carola: Eu não tinha lido a Octavia E. Butler ainda, li Kindred: laços de sangue e depois A parábola do semeador e A parábola dos talentos. Há muito tempo uma leitura não me impactava tanto, foram livros que, de certa forma, transformaram a minha maneira de pensar a ficção, me ajudaram a aprofundar uma série de ideias. Em Kindred, por exemplo, o fato de ela levar a protagonista, uma mulher negra e jovem, dos Estados Unidos contemporâneo para os Estados Unidos escravocrata do século 19, faz com que a experiência seja não aquela do distanciamento histórico ou intelectual (ah, que terrível era naquela época), mas uma experiência do corpo, que nos obriga a vivenciar a escravidão a partir do nosso corpo contemporâneo, ou seja, através da fantasia ela cria um deslocamento impossível no mundo real, mas que permite uma análise muito mais profunda e intensa. E por outro lado, como você disse, a capacidade de sonhar impacta a nossa realidade, se não formos capazes de imaginar outros futuros, como seremos capazes de concretizá-los? Seria interessante pensar em por que motivos o cânone literário moderno se prende tanto ao realismo.

Stephanie: Acho importante a gente observar esse contraste, enquanto algumas autoras se interessam em explorar as possibilidades da fantasia para tratar de questões políticas, da experiência de corpos que não têm plenos direitos, o status quo que se pretende universal se apega ao realismo. Isso me faz pensar em como se pretende definir o que real ou realista e para quem.

4.
Carola: Adoro o podcast que você faz com o Orlando Calheiros, o Benzina, sou super fã. No episódio sobre Exu, que é um dos meus preferidos, vocês falam, entre outras coisas, sobre a criação (do mundo) segundo as religiões de matriz africana, que ao contrário do catolicismo, segundo o qual a criação acontece ex-nihilo, nas religiões de matriz africana, tudo já existe enquanto potência (no espaço do vazio absoluto/caos do qual Exu é o guardião). Acho linda essa imagem, e muito próxima da experiência de criação literária. Talvez as ideias existam enquanto potência numa espécie de inconsciente coletivo, e ao escrever, a gente escreve com a técnica, sim, do sujeito, mas também com uma série de saberes que não são apenas nossos. Talvez exista uma conexão entre as religiões monoteístas e a ideia de sujeito na cultura ocidental.

Stephanie: Ah, fiquei muito feliz de saber que você gosta do Benzina! Sim, acho que existe semelhança entre a ideia de uma criação em que as potências estão misturadas no caos e são elaboradas na criação do mundo e na escrita. De certa forma entre a prática, a técnica e a curiosidade, a gente consegue acessar essas ideias que estão por aí e trazê-las para esse plano.

Certas ideias como a de originalidade estão muito ligadas a essa visão judaico-cristã da existência em que havia o nada, o princípio era o verbo e eis que tudo foi criado em sete dias. Quando na verdade, quem se envolve com processos criativos sabe que é preciso juntar referências, aprender com outras pessoas, tentativa e erro, muita prática até a gente reconhecer “opa, esse poema funciona”, “aqui tem uma história, preciso descobrir um jeito de contá-la”. A ideia da criação como algo solitário ou sofrido também faz parte da lógica cristã. Escrever tem momentos solitários, mas isso não impede que mantenhamos diversas trocas, com os autores que lemos, com os músicos que estamos ouvindo, com amigos que nada tem a ver com a nossa produção. Escrever e editar exigem concentração, mas antes disso, o momento de acumular as ideias pode ser povoado por muita gente. Quando comecei a me aproximar das religiões de matriz africana, a perspectiva de que a criação envolve vários Orixás, tentativa e erros, que o mundo não ficou pronto de uma vez foi muito reconfortante. Cada Orixá tem o seu papel e contribui de alguma maneira para que o mundo e a humanidade existam. Há aprendizados com o processo. Me parece jeito menos solitário e menos duro de encararmos as coisas. Gravar um podcast foi encontrar um processo criativo compartilhado que me tira desses momentos de concentração e silêncio de traduzir, ler e escrever. Eu e Orlando acabamos trocando muitas sugestões de leituras, de séries, filmes, “olha isso aqui, acho que rende uma pauta”.

Carola: Acho muito bacana essa ideia da tentativa e erro. Você fala em processo, talvez seja esse um dos principais pontos, em geral esquecemos de que se trata de um processo para focar apenas num “resultado final”. Talvez isso tenha alguma relação com a ideia de que há um início, um meio e um fim, quando, me parece cada vez mais, esses aspectos do processo acontecem simultaneamente e se misturam. E também com a ideia de um único deus, um deus que afastou de si a imperfeição, a falta, criando assim um mundo binário, dividido em bem e mal, homem e mulher, etc. Sinto que não seremos capazes de pensar outros futuros se não ouvirmos com muita atenção o que nos dizem as religiões de matriz africana, assim como as cosmogonias dos povos originários.

Stephanie: Sim, nós precisamos nos abrir para essas outras formas de pensar e entender nosso mundo. Nós convivemos com o erro, o inacabado, o imperfeito o tempo todo, mas sempre sob esse viés de algo ruim, negativo, quando na verdade tudo isso apenas é parte da existência. É curioso, porque se a gente pensar nos livros, a gente termina de escrever, mas ele só fica pronto quando alguém lê e participa, se apropria daquelas palavras. Então de certa forma, temos um produto acabado, mas que não se esgota com o fim do processo de escrita, edição, impressão. Um livro é algo que se reinventa a cada contato com um novo leitor.

5.
Carola: Literatura e afetos (tanto no sentido de conexão afetiva quanto daquilo que nos afeta, que nos transforma), quais fios são possíveis tecer aqui?

Stephanie: Muitos, porque escrever é um reflexo de ser leitora e os livros mudaram a minha vida. Do mais básico, que era espantar o tédio numa infância e adolescência sem internet, saciar um pouco da minha curiosidade, até me dar um vocabulário emocional para lidar com o luto, a solidão, relações amorosas, separação. Talvez por eu ter passado muito tempo lendo sem a menor distinção entre o que era literatura e o que era entretenimento, pois lia por prazer, eu tenha criado muito cedo a sensação de que há livros para momentos diferentes, mas sempre tem um livro que pode ser uma boa companhia. Então a literatura para mim está profundamente ligada aos afetos, porque vários autores expandiram a minha visão de mundo, as possibilidades que eu imaginava para minha vida. O meu livro já me proporcionou tantos encontros, boas conversas, alegrias, que só consigo pensar que os fios que ligam a literatura e os afetos são fios longos, espiralados, cheio de voltas e texturas, como o poema de Talvez precisemos de um nome para isso.

Carola: Me lembrei da Gloria Anzaldúa. Há uma passagem em Light in the dark, que diz o seguinte:

I propose a new perspective on imagination, to healing, and to shamanic spirituality. Art, reading and writing are image-making practices that shape and transform what we are able to imagine and perceive.

Eu gosto muito desse trecho, não só no que diz respeito à imaginação como ferramenta de criação de mundos, mas porque ela junta aspectos que costumam ser vistos de forma separadas: imaginação, espiritualidade/cura e arte. Talvez “buscar um nome para isso” seja também uma forma de nomear o sintoma que estava em silêncio.

Stephanie: Nossa, que trecho maravilhoso!

6.
Carola: Outro dia numa padaria num bairro da zona sul do Rio de Janeiro, morreu um homem em situação de rua. Ele entrou lá para pedir ajuda porque estava vomitando sangue e morreu, sem que lhe dessem qualquer ajuda ou atenção, morreu e o corpo ficou lá, coberto por um saco de lixo ou algo assim. Ele ficou lá por duas horas. Enquanto isso, a padaria continuou funcionando normalmente, as pessoas tomando seu café, comendo seu pão na chapa, talvez olhando as novidades no celular. O mais assustador é que não se trata de um acontecimento isolado, a gente vive numa sociedade em que algumas pessoas existem e outras não, são corpos invisíveis, aliás, é justamente isso o que nos constituiu como sociedade. Talvez a grande batalha seja a batalha por existir. Que função pode ter a literatura enquanto ferramenta (arma) para fora desse pesadelo?

Stephanie: O Ailton Krenak, em Ideias para adiar o fim do mundo, diz que precisamos ser claros sobre quais fins de quais mundos a gente está falando quando pensamos em adiar o fim do mundo, porque vários mundos já se acabaram, mas por outro lado há mundos que precisam acabar. Um mundo em que uma pessoa não recebeu ajuda, morre e a padaria continua aberta e os clientes não vão embora é um mundo que precisa acabar para que outro possa surgir. Essa história ilustra tudo que há de errado na nossa sociedade atualmente: o desrespeito com a vida, a desigualdade, a importância dada ao dinheiro, a falta de solidariedade ou o medo de ajudar alguém, a indiferença. E às vezes penso que essa capacidade de relativizar o valor da vida, da humanidade dos outros, é uma herança que a gente carrega de quase 400 anos de escravidão. Porque as leis mudaram, mas as ideias de que determinadas vidas são descartáveis fazem parte do nosso dia a dia. As pessoas leem as notícias, fazem um post nas redes sociais #luto #vidasnegrasimportam e continuam tomando seus cafés. É difícil falar de uma função/papel da literatura de modo geral, ainda mais durante uma pandemia, com um governo que se omite para deixar as pessoas morrerem. Só consigo pensar que a literatura nesse momento é uma ferramenta que me ajuda a criar espaços fora desse horror. Não falo de um escapismo para ficção (poderia ser), mas um ajuste de perspectiva, de que esse é um momento horrível, mas a humanidade já produziu e passou por outros momentos horríveis antes, então a gente precisa se apegar ao que pode fazer para manter saudável. Para mim, ler, escrever, traduzir são formas de elaborar o luto coletivo, o medo, o trauma, mas também ajudam a canalizar a raiva, a frustração, a sensação de impotência. A Audre Lorde mudou a minha vida não só com as traduções que fiz dos ensaios e da poesia dela, mas porque ela nos lembra que a raiva é um sentimento legítimo diante da injustiça, da desigualdade, mas que precisa ser bem usada para que não se volte contra nós. Atualmente só consigo pensar que a literatura é uma ferramenta e uma arma para criar possibilidades e dar vazão à minha raiva de maneira construtiva.

Carola: Sim, com certeza, as marcas da escravidão estão por toda parte: desde violências digamos assim, mais “sutis”, como a arquitetura dos apartamentos com o “quartinho de empregada” e área de serviço, o prédio com sua entrada social e outra de serviço, as babás uniformizadas acompanhando as famílias nos almoços de domingo, a empregada que é “como se fosse da família”, até aspectos mais abertamente violentos como o extermínio de parte da população, um genocídio que nunca teve fim. E para que isso tudo possa funcionar, é necessário criar recursos psíquicos, não só para tornar possível a violência mas também para usufruir dela, e esse recurso é a invisibilidade, um outro que ao mesmo tempo existe (para servir) e não existe (como ser humano). Quando você diz que a Audre Lorde mudou a sua vida, pra mim, é esse acontecimento a principal ferramenta, seja ela qual for. Outro dia eu reli A bolsa amarela, da Lygia Bojunga, e fiquei impressionada ao perceber o quanto aquele livro tinha me transformado, o quanto ele está gravado em mim, na pessoa e na escritora que sou. E o quanto eu encontrei ali, num livro, ainda na infância, as palavras para dizer o que eu ainda nem sabia que sabia, mas que sempre esteve em mim, e me senti menos só. Talvez esteja aí, nessa capacidade de produzir afetos, conexões, uma das principais potências da literatura. Talvez a literatura possa nos ajudar a enxergar aquilo que até então estava invisível, dentro e fora de nós.

Stephanie: Seu comentário me lembrou do início do ensaio A poesia não é um luxo, da Audre Lorde, que está em Irmã outsider: O tipo de luz sob a qual examinamos nossas vidas influencia diretamente como vivemos, os resultados que obtemos e as mudanças que esperamos promover através dessas vidas. É nos limites dessa luz que formamos aquelas ideias pelas quais vamos em busca de nossa mágica e a tornamos realidade. Trata-se da poesia como iluminação, pois é através da poesia que damos nome àquelas ideias que — antes do poema — não têm nome nem forma, que estão para nascer, mas já são sentidas. Essa destilação da experiência da qual brota a verdadeira poesia faz nascer o pensamento, tal como o sonho faz nascer o conceito, tal como a sensação faz nascer a ideia, tal como o conhecimento faz nascer (antecede) a compreensão.

7.
Carola: Termino citando um trecho do Manifesto ciborgue, da Donna Haraway: “Para trabalhar direito, não temos necessidade de uma totalidade. O sonho feminista sobre uma linguagem comum, como todos os sonhos sobre uma linguagem que seja perfeitamente verdadeira, sobre uma nomeação perfeitamente fiel da experiência, é um sonho totalizante e imperialista. Nesse sentido, em sua ânsia por resolver a contradição, também a dialética é uma linguagem de sonho. Talvez possamos, ironicamente, aprender baseadas em nossas fusões com animais e máquinas como não ser o Homem, essa corporificação do logos ocidental”.

Stephanie: Vou deixar aqui então um trecho do texto Dizemos revolução, de Paul B. Preciado em Um apartamento em Urano: “Precisamos inventar novas metodologias de produção de conhecimento e uma nova imaginação capaz de confrontar a lógica da guerra, a razão heterocolonial e a hegemonia do mercado como lugar de produção do valor e da verdade. Não estamos falando de uma simples mudança de regime institucional, de um deslocamento de elites políticas. Falamos da transformação micropolítica dos “domínios moleculares da sensibilidade, da inteligência e do desejo”. Trata-se se modificar a produção se signos, de sintaxe, a subjetividade, os modos de produzir e reproduzir a vida. Não estamos falando apenas de uma reforma dos estados-nações europeus. Não estamos falando de mover a fronteira de lá para cá. De tirar um estado para instalar outro. Estamos falando de descolonizar o mundo (…). Estamos falando de modificar a “Terrapolítica”.

Stephanie Borges
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1984. É jornalista, poeta e tradutora. Estreou em 2019 com o livro de poesia Talvez precisemos de um nome para isso, vencedor do Prêmio Cepe de Literatura. Verteu para o português o romance Um outro Brooklyn, de Jacqueline Woodson, e os ensaios e conferências reunidos em Irmã outsider, de Audre Lorde, entre outros títulos. Mantém o podcast Benzina, em parceria com o antropólogo Orlando Calheiros.
Carola Saavedra

É autora, entre outros, dos romances Flores azuis (eleito melhor romance pela Associação Paulista dos Críticos de Arte), Paisagem com dromedário (Prêmio Rachel de Queiroz na categoria jovem autor), O inventário das coisas ausentes e Com armas sonolentas. Seus livros foram traduzidos para o inglês, francês, espanhol e alemão. Está entre os 20 melhores jovens escritores brasileiros escolhidos pela revista Granta. Desde 2019, é professora e pesquisadora na Universidade de Colônia.

Rascunho