🔓 Salte o poema

Se até os professores de literatura são capazes de ignorar páginas sobre poesia das apostilas escolares, é preciso alguma rebeldia para mergulhar nesse gênero
Ilustração: Carolina Vigna
09/11/2021

Já contei isto por aí, várias vezes, mas acho que não assim, deste ângulo. Um dia, numa aula de literatura da escola básica, a professora fez aquele negócio quase automático que quase todo(a) professor(a) faz: abram a apostila na página tal. A gente que estava sentada nas carteiras, diante da mestra, obedeceu: pá, pá, pá. Chegamos. E aí? Agora leiam e façam os exercícios 2, 3 e 4. Começam as perguntas idiotas, a professora age com relativa paciência, barulhos de folhas virando, lápis caindo, borrachas apagando as respostas em apostilas usadas, vamos lá. Menos de cinquenta minutos para aprender algo sobre literatura brasileira. Isso foi no século 20, mas garanto que não mudou tanto.

Se fizéssemos as contas e observássemos os números de páginas, perceberíamos que ela mandou saltar alguma coisa. A professora de literatura saltou, serelepemente, umas tantas páginas da apostila de literatura, aquela matéria das que me davam mais esperança de que a escola não fosse apenas uma espécie de regime semiaberto onde a gente toma banho de sol por vinte minutos entre aulas chatas e menos chatas.

Ah, isso não vai ficar assim. Sorrateiramente, deixa ver o que foi que ela mandou saltar, essa danadinha. Cadê a literatura brasileira que estava aqui? O gato comeu? Vai morrer de indigestão, acham elas e eles, os que não gostam de literatura, mesmo dando aula de literatura. Bom, tem para todos os gostos. Mas é que eu queria conhecer as possibilidades, e saltando não vai dar mesmo.

Arrá! Era isto! Ela mandou dezenas de nós saltarmos as páginas em que havia poesia! Não me surpreende. Mas me chateia sobremaneira (quem usa ainda esta palavra?). Passei uns segundos na clandestinidade, lendo uns poemas que quase saltei, mas que, por pura curiosidade, paixão, desobediência, resolvi aprender o que eram, como eram. Sabe quem estava lá? Paulo Leminski, que eu diria que fazia um “tipo de poesia” que eu ainda não conhecia direito e que me dava assim uma sensação de lufada de ar fresco na cara. Isso era ali nos idos de 1990 e a figura bigoduda dele ainda estava longe de ser best-seller, mas já pintava, aqui e ali, nas apostilas de colégios nos recônditos das Minas Gerais. Ainda bem. Mas saltar, professora?

Até hoje fico pensando na importância desse salto. Primeiro me intrigam os critérios provavelmente usados para escolher as páginas tais e saltar as anteriores. O que seria o motor disso? Poesia insuficientemente boa? Poesia ruim? Poesia desimportante? Poesia e desimportância são sinônimos? Poesia de um poeta ainda talvez desconhecido? Poesia sem aquele traço severo e contadinho de fases anteriores e mais escolares? Também fico achando que o salto, afinal, foi bom. O ter quase saltado, só que não, me deixou com esta história lendária na cabeça: fui na clandestinidade, fui rebelde, dessas rebeldias miúdas que mudam a vida da gente, depois que eclodem, mais adiante.

Ler três versos do Paulo Leminski, sim, eram exatamente três, foi importante para minha jornada poética da vida toda. Não sei se isso me deu sorte ou azar, mas me deu alento. Me deu um choque, porque eu pensei: então é isto? Poesia também pode ser isto? Porque se a apostila ou o livro didático dizem… como não crer? Livros escolares fazem estragos no nosso imaginário, na visão de mundo, mas na poesia eu não admiti. Não me deixei levar pelos saltos da professora e fui lá espiar no escuro das páginas viradas.

Que bom. Saber aqueles versos — que até hoje sei de cor e posso, se fechar os olhos, ver diante de mim, na exata posição da página da apostila — foi crucial. Isso ecoou durante décadas nas minhas leituras poéticas, nas trilhas dos livros que procurei e que encontrei ou não, nas relações com outros e outras poetas reais, vivos(as), no que eu tentava escrever, sendo bom ou não. Isso me deu uma espécie de chave, tipo aquela do Drummond, só que não para ler; quando a pessoa dá de escrever, ela quer ainda outras chaves, que pouca gente fornece.

Professora, poxa, precisava saltar? Talvez mais colegas tivessem a oportunidade que eu tive, ao ler, escondido, aqueles versos bemóis e sustenidos. Ou talvez tivessem achado tão chato quanto tudo. Ou talvez aquilo fosse o assunto da hora do recreio, o comentário chocado sobre um poeta curitibano. Que pena. Que coisa.

Quando cresci, fui ser professora. Até dei, aqui e ali, aulas de literatura, alguma literatura, a parte possível ou semipossível que alcança as escolas ou que é aceitável nelas, mas não foi aceitável para mim. Nunca mais tive forças para enfrentar a sozinhez que é gostar de poesia, de verdade, em ambientes controlados. Poesia continua sendo uma coisa que atravessa, feito corrente de ar: precisa de janelas abertas dos dois lados. Quando perceber, digo: volte as páginas.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

Rascunho