🔓 Perdidas

A adaptação cinematográfica do livro “A filha perdida”, de Elena Ferrante, é uma oportunidade para se pensar a identidade essencial e inegociável da mulher
Olivia Colman interpreta Leda, uma angustiada professora universitária em férias
08/01/2022

Era uma segunda-feira, dia útil para todo mundo, especialmente para mim que ia em direção ao aeroporto em fuga. Uma semana útil que começava com um corte. Eu não saía só de casa, saía do país. Deixava meus filhos com o pai deles e ia embora. Sozinha. No avião, ouvi música e sorri. Se me chamassem, eu já não poderia ouvir.

A primeira vez que deixei minha filha com o pai dela, ela tinha menos de dois meses, mamava no peito e precisei que ela parasse. Minha mãe morria no Brasil e eu precisava encontrá-la agora que já era tarde demais. Naquela manhã, antes da primeira fuga, amamentei minha filha até ela passar mal. Dei banho nela, coloquei a roupinha mais quentinha que encontrei — era fim de fevereiro —, cortei as unhas ainda moles dela, enrolei-a numa manta e entreguei como um pacote ao pai dela. Eu precisava ir embora. Quando voltei, depois de enterrar minha mãe, encontrei minha filha muito bem cuidada, com as bochechas rosadas, vacinas em dia. Mas eu precisava continuar a ir embora, ainda que tivesse acabado de chegar. Como não tinha como fugir, literalmente, desapareci dentro de casa. Estive ausente por seis meses tentando dar conta de um trauma que, assim espero, foi superado. Eventualmente, consegui voltar até a próxima fuga, doze anos depois.

Enquanto planejava a minha segunda retirada, dias antes de partir, fui perseguida e, eventualmente, tomada por uma culpa que quase me engoliu. Dormia com os filhos na minha cama, num sanduíche que me coroava com uma impensável dor nas costas, mas necessária para que eu sugasse deles cada gota antes do dia D. Enquanto organizava a minha mala, respondia às mensagens de amigas, conhecidas que me perguntavam, assustadas, como eu faria sem as crianças durante dois meses? Foram poucas as pessoas que me perguntaram no que eu trabalharia durante dois meses. O foco era, geralmente, a audácia da minha ida, do rompimento de dois meses inteiros onde eu, desavergonhadamente, fui feliz como não era há muito tempo. E as crianças não estavam lá. Claro, essas fugas só podem acontecer porque há um indivíduo interessado em dar esse suporte. Deixar as crianças com o pai delas foi uma decisão muito mais acertada do que dizer não à proposta de trabalhar meu livro em Portugal e ter que permanecer frustrada, triste em hipóteses, com a minha essência abalada. Se eu tivesse ficado não teria sido por mim. Talvez para parentes e conhecidos tivesse sido a decisão acertada, honrosa, sensata. Mas eu não estava disposta a estar certa, ter honra ou sensatez. Queria ir embora. Era hora de fugir. Na volta para a casa, a emoção de ver aquele amor sólido ali, dois rostos que são duas estrelas brilhantes, esperando por mim como esperei pelo amor deles. No dia seguinte, a vida, surpreendentemente, continuava normal.

Há também mulheres que não podem fugir dessa forma. Então, precisam fugir de fato, pra valer. Quem se lembra da história da mãe que roubou mercadorias no supermercado na esperança de ser presa e que cozinhassem para ela, que ela tirasse uma folga dos filhos e suas intermináveis demandas?

Não são só os filhos que são deixados, mas as mães, especialmente, estão exaustas, soltas e perdidas dentro de uma pequena gaiola.

Imaginem essa situação: uma mulher jovem com muitos e profundos interesses intelectuais e artísticos tem a oportunidade de viver a sua essência. Em outras palavras: ser feliz sendo quem é. O obstáculo para ela — desculpe, o uso da palavra é deliberado — são as filhas pequenas.

Essa não poderia ser a sinopse para o filme A filha perdida, adaptação do livro homônimo de Elena Ferrante, mas pode dar conta do aspecto que mais me chama a atenção, tanto no filme quanto no livro.

Essa temática na narrativa de Ferrante e no filme dirigido por Maggie Gyllenhaal me comove porque é tabu. Interessa-me porque é um tema reprimido e sofrido em silêncio. Mesmo que essa problemática seja identificada, o que é possível fazer com a consciência de que nem sempre uma mulher que é mãe quer seus filhos por perto?

Quem vai falar sobre esse pecado, esse crime, essa culpa, essa suposta falta de caráter e amor? Afinal, o que não falta é julgamento. Mas nós podemos falar do assunto e, quem sabe, descamar a observação cristalizada desse cenário para entendermos um pouco mais do humano que compõe uma mãe. Já escrevi sobre o assunto em um texto para a Revista Deriva, no qual falo sobre o assombro que é o filme Sonata de outono, de Bergman. Temos no longa sueco um conflito bastante similar com o do A filha perdida. Uma mãe deixa os filhos com o pai e sai de casa em busca da manutenção da sua identidade essencial e inegociável. Uma mãe que é, antes de qualquer coisa, uma mulher e uma profissional e que não está disposta a se enquadrar. Mas esse enquadramento talvez nem seja exatamente relativo à dificuldade de se enxergar como matriz. Pode ser, não tenho certeza, que o problema seja o entorno com o qual essa mulher de espírito livre precisa conviver. Ou seja, a tentativa frustrada de conciliação entre a função de mãe e o que nunca deixou de ser: uma mulher. Não é, necessariamente, uma incapacidade dessa mulher em conciliar essas identidades, mas, culturalmente, é comum que mãe e mulher sejam papéis colocados como intoleráveis entre si ou excludentes. Mas não é só isso. Tanto em Sonata de outono quanto em A filha perdida as mães têm camadas. Com isso quero dizer que têm uma riqueza de passado, um dinamismo no presente, uma excitação pelo futuro. E não em relação apenas aos filhos ou à família, mas a elas, especialmente.

Às vezes, porém, um casamento com filhos acontece nas vidas dessas mulheres que mudam de ideia, que estão abertas a experimentar a vida e fazem disso uma prioridade. A vida, porém, é severa com quem deseja. É um pouco a história da criança que sempre quis andar de barco no mar. Quando a praia se afasta dos olhos, ela se vê com náusea e descobre que não gosta de estar ali. As opções são assustadoras: ela pode pular do barco e morrer. Ela pode pular do barco e tentar nadar. Ela pode ficar no barco e vomitar. Ela pode ficar no barco até que chegue à praia novamente. Ela não pode fazer lá tanta coisa assim. Ela está em alto-mar.

Talvez a questão que pulsa e aquela que se prolonga e não vai a lugar algum é a relação que os filhos que foram separados dessas mulheres têm com suas mães e com suas próprias questões. Não posso elaborar sobre rejeição, abandono, narcisismo, raiva, mas a psicanálise pode. Eu como uma mãe completamente imperfeita, em esporádicas fugas e com interesses que vão muito além daqueles da maternidade, não consigo nem mesmo pensar em fazer juízo dessas mulheres que tiveram uma coragem rara. Custou e sempre custa muito, sem dúvidas, mas a coragem esteve lá. Que corte profundo.

Das cenas do filme há algumas que me atravessaram. O encontro de Leda, num jantar em uma conferência, com o colega onde ele diz a ela o poema de Yeats, Leda e o cisne, num processo de sedução que ela não está disposta a resistir. O poema, claro, é uma referência à mitologia grega e à história de Leda, uma mulher estuprada por Zeus disfarçado de cisne e que tem dois filhos dele, de dois ovos. Uma associação possível à violência sofrida por uma mulher por puro desejo de um homem, agente do patriarcado, e que se reflete nas práticas culturais.

Outra cena marcante sobre a mulher dentro da mãe é quando Leda está no parquinho com as filhas e, ao telefone, se excita com o colega professor, num mundo escondido só dela em permanente conflito com a santidade dos rostos angelicais das crianças brincando ao sol. Aquela passagem me faz pensar no livro da Annie Ernaux, Uma simples paixão, onde há o parágrafo:

Na Marie Claire, os jovens, entrevistados, condenam sem apelo os amores da mãe separada ou divorciada. Uma garota diz, com rancor: “Os amantes da minha mãe só serviram para a fazer sonhar”. E que melhor serviço lhe poderiam prestar?

Também a cena em que Leda telefona para uma das filhas, no início do filme. Ela está prestes a falar da bela paisagem que vê e a filha precisa desligar. A distância entre as duas, talvez a falta de um amor em exercício diário, se impõem na falta de um interesse genuíno. Na pressa em desligar. Como se tivesse sido bom falar uma com a outra, mas falar uma com a outra custa.

Ninguém nunca pode ter tudo. Muito menos uma mãe que está perdida como uma criança.

Nara Vidal

É mineira, formada em Letras pela UFRJ e Mestre em Artes pela London Met University. É escritora, tradutora e editora. Autora de livros infantis e ficção adulta. Seu romance de estreia, Sorte (Moinhos), traduzido na Holanda, foi um dos vencedores do Prêmio Oceanos em 2019. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mapas para desaparecer (Faria e Silva).

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