🔓 O Gabriel

Diante do portĂŁo, um morador de rua explica como a leitura Ă© importante e fala de seu sonho de conhecer Cuba
Ilustração: FP Rodrigues
11/10/2022

A gente passa meses juntando as garrafas pet dos refris que toma. Sim, a gente toma muito refri. E não é raro que alguém bata a campainha perguntando se tem desse tipo de material reciclável para dar. Papel velho, jornal, roupa, comida. As pessoas batem à porta pedindo. Mas as garrafas pet estavam sendo guardadas para uma finalidade específica. Só que a Maria não sabia. Ela ouviu a campainha e foi lá fora saber o que era. Encontrou, olhando pela grade, um rapaz alto, magro, de dentes separados, pedindo as garrafas de plástico reciclável. Disse que tinha. Eu disse que não. É que iam sendo juntadas para dar a outra pessoa, mas agora fiquei em maus lençóis. Vamos lá. O jeito é dar assim mesmo e começar a juntar tudo de novo. Não haverá de faltar.

Enquanto a Maria pegava as garrafas todas numa caixa de papelão, fui até o portão de grades espaçadas para ver quem estava lá esperando. Saí de roupa de dia de semana, chinelão, girei a tetra chave na fechadura meio bamba. O moço lá fora nem quis que eu terminasse de cumprimentá-lo, já me surpreendeu lendo os escritos que estavam na minha camiseta rosa: Las chicas son libres.

“A senhora não me fale nada, deixa eu tentar. Por acaso aí na sua blusa está escrito que as mulheres são livres?”, e apontava de longe na direção das letras inscritas sobre o meu peito esquerdo.

“Sim, como é que você sabe?”

Antes de dizer como, ele me perguntou: “É mexicano?”.

“É espanhol, que é a língua que se fala no México, sim, mas me diga como você sabe?”

Bom, ele me deu uma resposta peremptória: “Eu leio muito”. Pensei, sem dizer: mas lê em espanhol? “Eu leio muito, sabe, dona? Aprendi a ler, não tenho estudo quase nenhum, mas eu vou falar pra senhora: escola é importante, mas ler é mais”.

Sábio, ele. Que não me ouçam meus empregadores, mas olha: ler é mais. E continuou: “Meu pai e minha mãe já morreram, também não tinham estudo, mas me ensinaram algumas coisas. Dessas eu aprendi a ler, e leio muito. Gosto de livro. E tenho um sonho na vida: conhecer Cuba”.

Acho que meu queixo estava caído. O rapaz enfiava as garrafas pet num saco enorme de um material resistente enquanto me falava sobre a ilha, a capital Havana, a língua que queria aprender lá, os livros de história que andava lendo. Não dava para ignorar.

“Qual é seu nome?”

“É Gabriel.”

Ele nĂŁo quis saber o meu.

O Gabriel mora na rua, em algum lugar perto aqui de casa. Achei invasivo perguntar a ele por que estava na rua. Mantive um respeitoso e curioso silêncio enquanto ele falava de seus sonhos, de seus livros e de como a leitura o afetava desde sabe lá quando. Ele, enfim, me perguntou:

“A senhora faz o quê?”

“Sou professora…”

“De quê?”

“De portuguĂŞs…”

…e ele inferiu que, alĂ©m de garrafas pet, eu devia ter uns livros.

Fiquei de arranjar-lhe alguns, mas minha especialidade nĂŁo Ă© histĂłria. De todo modo, talvez eu acerte no gosto de Gabriel.

NĂŁo fiquei sabendo se ele concorda que las chicas son libres. Parece que sim. Disso nĂŁo houve dĂşvida. Nem de que de ler Ă© mais interessante do que muita coisa.

O Gabriel saiu com um monte de garrafas que provavelmente valem pouco. Deve ter lido alguma coisa naquele dia. Tinha consciência de que se comunica bem. Me disse isso no meio da nossa conversa. É articulado, tem um vocabulário interessante e traduz algumas frases em castelhano. Por quanto tempo ele ainda sonhará com o mundo e suas outras possibilidades? Da próxima vez, vou entregar uns livros junto das garrafas. É com eles que o Gabriel aprende, mas não só. É com eles que o Gabriel cultiva seus desejos para o amanhã. Parte das coisas ele recicla; outra parte ele sabe aproveitar.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

Rascunho