šŸ”“ Nós, os velhos

Um show de falsos Beatles e uma viagem a um tempo em que o mundo girava numa rotação mais lenta
Ilustração: Carolina Vigna
01/04/2023

VocĆŖ Ć© um velho, meu filho. As palavras mastigadas pelos dentes falsos da dentadura desenharam um leve sorriso no canto da minha boca, um esgar irĆ“nico carregado da certeza de que a assertiva materna arrastava um punhado de verdade. Eu ainda era um homem jovem, de mĆŗsculos firmes e certezas inabalĆ”veis. E vislumbrava alguns sonhos no delicado equilĆ­brio da vida. Portanto, apenas um velho metafórico. Ou nem tanto. NĆ£o lembro o motivo da ralhação da mĆ£e. VivĆ­amos num mundo de poucas palavras, silĆŖncios pesados e afetos esparsos. ƀs vezes, quebrĆ”vamos o pacto domĆ©stico e tĆ­nhamos alguns momentos que tentavam dissipar as negras nuvens que pairavam sobre a nossa famĆ­lia — conduzida com elevados Ć­ndices alcoólicos corpo adentro do pai, transformados em safanƵes, socos e ofensas ridĆ­culas. Ɖramos feras enjauladas a brincar de pai, mĆ£e e filhos. O lobo estava sempre dentro da casa dos trĆŖs porquinhos.

O irmĆ£o riu. E reproduziu baixinho a alcunha proferida pela mĆ£e: velho. A palavra — mesmo numa casa moldada de vazios semĆ¢nticos — transformava-se em marca Ć  brasa no lombo. Velho. Talvez a mĆ£e tivesse razĆ£o. Sempre reclamando pelos cantos, os ombros arqueados para baixo, como se amparasse o corpo magro numa bengala imaginĆ”ria. Um tĆ­pico personagem das horrendas histórias infantis: espĆ©cie de bruxo urbano, com certo exagero. Detestei quase todas as tecnologias. Evito atender chamadas telefĆ“nicas. E ainda fujo das imprescindĆ­veis redes sociais feito um cachorro sarnento apedrejado. Tenho um trauma: nunca postei uma foto de cafĆ© expresso ao lado de um livro. Talvez, o faƧa, trocando a xĆ­cara de cafĆ© por um penico ou a dentadura num copo d’Ôgua. Enclausuro-me em casa e só saio para o necessĆ”rio da vida. Alguns poucos amigos garantem que nĆ£o sou velho, sou um misantropo literĆ”rio. Tomo isso como um elogio. Afinal, nĆ£o posso me dar ao luxo de perder os amigos que chegaram atĆ© aqui, nesta encruzilhada rumo a um fim tĆ£o previsĆ­vel.

Mas não me preocupo com a maldição que me acompanha mesmo com a morte da mãe hÔ dez anos. Engraçado: para o epílogo, o câncer instalou-se na garganta daquela mulher quieta e escavou buracos que a impediram de falar. Inclusive os médicos furaram um buraco sem seu pescoço para que respirasse. Havia duas opções: morrer sufocada ou morrer mastigada devagarzinho feito uma barata devorada por pequenas e famintas formigas. Optou-se pelas formigas. No final, a mãe não falava (mas para que palavras se elas nunca contaram uma história completa?), apenas grunhia e, vejam que incrível, comunicava-se por palavras escritas em tirinhas de papel. Um tanto irÓnico para uma mulher quase analfabeta. Como bom filho, decifrei até o fim cada hieróglifo esculpido na caverna assombrada pela morte. Reproduzi a história possível.

O que me preocupa agora — neste instante em que chego ao terƧo final da vida, caso a lógica prevaleƧa — Ć© que coloquei no mundo outro pequeno velho. EsperĆ”vamos pelo arremedo dos Beatles no teatro quase lotado. A noite de sĆ”bado era agradĆ”vel e um amor imenso nos envolvia. Ele com a clĆ”ssica camiseta preta e o nome da banda inglesa em letras brancas. Ɖ um menino feliz, tem muitos amigos, articula com facilidade pensamentos lógicos, vai bem na escola, joga futebol com desenvoltura, gana e elegĆ¢ncia. Mas algo estĆ” fora do lugar, desloca-se para um tempo pretĆ©rito, em direção aos antepassados que nĆ£o tivemos.

Caminha com os ombros arqueados. Vejo em sua mão esquerda (sim, ele se declara de esquerda para certo desespero da mãe e da irmã) uma bengala de carvalho. Estamos lado a lado a ombrear nossas senilidades precoces. Tem um gosto musical peculiar: além de Beatles (de onde veio o amor pela banda de Liverpool?), de quem sabe todas as mais de duzentas músicas (Algumas ainda não sei a letra toda, diz com a certeza de que logo saberÔ), carrega em sua discoteca afetiva: Belchior, Chico Buarque (fomos ao show), Tom Jobim, MÓnica Salmaso, Vinicius de Moraes, The Velvet Underground, The Kinks e por aí afora rumo aos anos sessenta, cinquenta, quarenta. Aos treze anos, é um velho de bom gosto. Um velhinho com a vitalidade de um leão.

No domingo, o pai completou setenta e cinco anos. NĆ£o teve festa. Eu nĆ£o liguei. NĆ£o teve o feliz aniversĆ”rio, pai. NĆ£o teve bolo. Nem velas. Nem parabĆ©ns pra vocĆŖ. Nem nada. Meu irmĆ£o esqueceu do aniversĆ”rio. Me mandou mensagem perguntado se jĆ” tinha passado a data. Eu disse Ć© hoje, setenta e cinco anos. Vou mandar uma mensagem, ele disse. Eu nĆ£o disse nada. Minha vinganƧa Ć© literalmente silenciosa. NĆ£o se trata de vinganƧa, na verdade. Ɖ apenas a falta absoluta de ter o que dizer. Nunca tivemos palavras a entregar um ao outro. Nunca tivemos quase nada nesta troca imposta pelo acidente genĆ©tico que nos colocou um no caminho do outro. Mas nĆ£o temos escolha: vamos suportando a existĆŖncia que logo serĆ” apenas uma lembranƧa meio borrada.

Dançamos com a timidez que nos assombra. Um quase imperceptível movimento de braços e pernas entre as poltronas do teatro, onde velhos de todas as idades sonhavam uma juventude infinita. Desafinado, ele cantou com gosto todas as músicas. Eu inventei palavras, movimentei os lÔbios em falsete: um títere de Lennon à sorrelfa. Somente na infantil Yellow submarine, consegui esboçar versos completos apesar da canhestra pronúncia. Mas, neste caso, trata-se da vingança particular de um daltÓnico. Escondo motivos diabólicos em minhas interações sociais.

Após mais de duas horas dos falsos Beatles, todos de SĆ£o Paulo, esforƧando-se num carregado sotaque britĆ¢nico, saĆ­mos a passos lentos, amparados numa fraternal felicidade, como convĆ©m a dois anciĆ£os. JĆ” sob um cĆ©u estrelado rumo ao estacionamento, ele disse com um ar de normalidade ā€œagora estou ouvindo muito a Celly Campelloā€. Os versos de EstĆŗpido cupido solaparam a minha cara de incredulidade. Consegui apenas retribuir com um ā€œmuito bom, meu filhoā€. Mas queria era devolver na mesma moeda a heranƧa familiar: vocĆŖ Ć© um velho, meu filho.

Restou-me entregar-lhe a bengala para que tivesse mais firmeza nos passos atƩ o charmoso Simca Chambord que nos levaria de volta ao futuro.

RogƩrio Pereira

Nasceu em GalvĆ£o (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. Ɖ criador e coordenador do projeto Paiol LiterĆ”rio. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca PĆŗblica do ParanĆ”. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na FranƧa e na FinlĆ¢ndia. Ɖ autor dos romances Antes do silĆŖncio (2023) e Na escuridĆ£o, amanhĆ£ (2013, 2ĀŖ edição em 2023) — finalista do PrĆŖmio SĆ£o Paulo de Literatura, menção honrosa no prĆŖmio Casa de las AmĆ©ricas (Cuba) e traduzido na ColĆ“mbia (Babel Libros) — e da coletĆ¢nea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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