VocĆŖ Ć© um velho, meu filho. As palavras mastigadas pelos dentes falsos da dentadura desenharam um leve sorriso no canto da minha boca, um esgar irĆ“nico carregado da certeza de que a assertiva materna arrastava um punhado de verdade. Eu ainda era um homem jovem, de mĆŗsculos firmes e certezas inabalĆ”veis. E vislumbrava alguns sonhos no delicado equilĆbrio da vida. Portanto, apenas um velho metafórico. Ou nem tanto. NĆ£o lembro o motivo da ralhação da mĆ£e. VivĆamos num mundo de poucas palavras, silĆŖncios pesados e afetos esparsos. Ćs vezes, quebrĆ”vamos o pacto domĆ©stico e tĆnhamos alguns momentos que tentavam dissipar as negras nuvens que pairavam sobre a nossa famĆlia ā conduzida com elevados Ćndices alcoólicos corpo adentro do pai, transformados em safanƵes, socos e ofensas ridĆculas. Ćramos feras enjauladas a brincar de pai, mĆ£e e filhos. O lobo estava sempre dentro da casa dos trĆŖs porquinhos.
O irmĆ£o riu. E reproduziu baixinho a alcunha proferida pela mĆ£e: velho. A palavra ā mesmo numa casa moldada de vazios semĆ¢nticos ā transformava-se em marca Ć brasa no lombo. Velho. Talvez a mĆ£e tivesse razĆ£o. Sempre reclamando pelos cantos, os ombros arqueados para baixo, como se amparasse o corpo magro numa bengala imaginĆ”ria. Um tĆpico personagem das horrendas histórias infantis: espĆ©cie de bruxo urbano, com certo exagero. Detestei quase todas as tecnologias. Evito atender chamadas telefĆ“nicas. E ainda fujo das imprescindĆveis redes sociais feito um cachorro sarnento apedrejado. Tenho um trauma: nunca postei uma foto de cafĆ© expresso ao lado de um livro. Talvez, o faƧa, trocando a xĆcara de cafĆ© por um penico ou a dentadura num copo dāĆ”gua. Enclausuro-me em casa e só saio para o necessĆ”rio da vida. Alguns poucos amigos garantem que nĆ£o sou velho, sou um misantropo literĆ”rio. Tomo isso como um elogio. Afinal, nĆ£o posso me dar ao luxo de perder os amigos que chegaram atĆ© aqui, nesta encruzilhada rumo a um fim tĆ£o previsĆvel.
Mas nĆ£o me preocupo com a maldição que me acompanha mesmo com a morte da mĆ£e hĆ” dez anos. EngraƧado: para o epĆlogo, o cĆ¢ncer instalou-se na garganta daquela mulher quieta e escavou buracos que a impediram de falar. Inclusive os mĆ©dicos furaram um buraco sem seu pescoƧo para que respirasse. Havia duas opƧƵes: morrer sufocada ou morrer mastigada devagarzinho feito uma barata devorada por pequenas e famintas formigas. Optou-se pelas formigas. No final, a mĆ£e nĆ£o falava (mas para que palavras se elas nunca contaram uma história completa?), apenas grunhia e, vejam que incrĆvel, comunicava-se por palavras escritas em tirinhas de papel. Um tanto irĆ“nico para uma mulher quase analfabeta. Como bom filho, decifrei atĆ© o fim cada hieróglifo esculpido na caverna assombrada pela morte. Reproduzi a história possĆvel.
O que me preocupa agora ā neste instante em que chego ao terƧo final da vida, caso a lógica prevaleƧa ā Ć© que coloquei no mundo outro pequeno velho. EsperĆ”vamos pelo arremedo dos Beatles no teatro quase lotado. A noite de sĆ”bado era agradĆ”vel e um amor imenso nos envolvia. Ele com a clĆ”ssica camiseta preta e o nome da banda inglesa em letras brancas. Ć um menino feliz, tem muitos amigos, articula com facilidade pensamentos lógicos, vai bem na escola, joga futebol com desenvoltura, gana e elegĆ¢ncia. Mas algo estĆ” fora do lugar, desloca-se para um tempo pretĆ©rito, em direção aos antepassados que nĆ£o tivemos.
Caminha com os ombros arqueados. Vejo em sua mão esquerda (sim, ele se declara de esquerda para certo desespero da mãe e da irmã) uma bengala de carvalho. Estamos lado a lado a ombrear nossas senilidades precoces. Tem um gosto musical peculiar: além de Beatles (de onde veio o amor pela banda de Liverpool?), de quem sabe todas as mais de duzentas músicas (Algumas ainda não sei a letra toda, diz com a certeza de que logo saberÔ), carrega em sua discoteca afetiva: Belchior, Chico Buarque (fomos ao show), Tom Jobim, MÓnica Salmaso, Vinicius de Moraes, The Velvet Underground, The Kinks e por aà afora rumo aos anos sessenta, cinquenta, quarenta. Aos treze anos, é um velho de bom gosto. Um velhinho com a vitalidade de um leão.
No domingo, o pai completou setenta e cinco anos. Não teve festa. Eu não liguei. Não teve o feliz aniversÔrio, pai. Não teve bolo. Nem velas. Nem parabéns pra você. Nem nada. Meu irmão esqueceu do aniversÔrio. Me mandou mensagem perguntado se jÔ tinha passado a data. Eu disse é hoje, setenta e cinco anos. Vou mandar uma mensagem, ele disse. Eu não disse nada. Minha vingança é literalmente silenciosa. Não se trata de vingança, na verdade. à apenas a falta absoluta de ter o que dizer. Nunca tivemos palavras a entregar um ao outro. Nunca tivemos quase nada nesta troca imposta pelo acidente genético que nos colocou um no caminho do outro. Mas não temos escolha: vamos suportando a existência que logo serÔ apenas uma lembrança meio borrada.
DanƧamos com a timidez que nos assombra. Um quase imperceptĆvel movimento de braƧos e pernas entre as poltronas do teatro, onde velhos de todas as idades sonhavam uma juventude infinita. Desafinado, ele cantou com gosto todas as mĆŗsicas. Eu inventei palavras, movimentei os lĆ”bios em falsete: um tĆtere de Lennon Ć sorrelfa. Somente na infantil Yellow submarine, consegui esboƧar versos completos apesar da canhestra pronĆŗncia. Mas, neste caso, trata-se da vinganƧa particular de um daltĆ“nico. Escondo motivos diabólicos em minhas interaƧƵes sociais.
Após mais de duas horas dos falsos Beatles, todos de SĆ£o Paulo, esforƧando-se num carregado sotaque britĆ¢nico, saĆmos a passos lentos, amparados numa fraternal felicidade, como convĆ©m a dois anciĆ£os. JĆ” sob um cĆ©u estrelado rumo ao estacionamento, ele disse com um ar de normalidade āagora estou ouvindo muito a Celly Campelloā. Os versos de EstĆŗpido cupido solaparam a minha cara de incredulidade. Consegui apenas retribuir com um āmuito bom, meu filhoā. Mas queria era devolver na mesma moeda a heranƧa familiar: vocĆŖ Ć© um velho, meu filho.
Restou-me entregar-lhe a bengala para que tivesse mais firmeza nos passos atƩ o charmoso Simca Chambord que nos levaria de volta ao futuro.