🔓 Mais política no ano da reconstrução

A conquista da democracia brasileira depende da educação e da cultura, estratégias fundamentais de liberdade
Ilustração: João Verderame
01/02/2023

Os mais importantes e referenciais textos de filosofia ou de ciência política, ou ainda, de história ou biografias de grandes nomes que lideraram emancipações sociais ao longo dos séculos, deixam muito evidente que os processos de conquista de direitos humanos e equidade social e econômica são e sempre serão uma conquista, nunca uma dádiva.

Esta premissa forjou muitas frases e ditados populares que adequaram a ideia de conquista social emancipadora a todo e qualquer direito ou licença para que o indivíduo tenha a liberdade para agir conforme sua vontade ou desejo. Aos indivíduos, seja na família ou no trabalho, se exige uma performance de conquistas que possibilitam, e justificam, o eventual êxito na dura competição da vida moderna e contemporânea que valoriza muito mais o ter do que o ser.

Se podemos questionar as derivações da ideia central de conquista na política para a vida privada das pessoas, não há o que questionar sobre sua aplicação quando se trata da formulação de políticas públicas. Ou buscamos com luta e resiliência infinita uma sociedade mais justa, mais equânime, mais fraterna, mais solidária e empática entre os seres humanos e a natureza, ou o resultado será a barbárie destrutiva da ainda precária civilidade de nossas sociedades, fazendo-nos regressar a estágios civilizatórios inimagináveis.

Não é fácil, nunca foi fácil, construir uma consciência nacional de que a participação efetiva da sociedade que constitui um território e uma nação é o grande veículo de conquista de que dispomos para avançar ou recuar. No Brasil, a alienação da maioria do seu povo em participar da política é algo crônico, forjado pela nossa história elitista e excludente, onde o exercício da política majoritária só pode ser exercido pelos famigerados “homens de bem”.

Essa abjeção atribuída à atividade política está tão profundamente enraizada que a encontramos em todas as áreas de atuação da sociedade civil e em todas as estratificações sociais. Ditos populares a confundem com paixões e emoções individuais, desqualificando sua circulação nas conversas entre pares e familiares. Quem nunca ouviu, ou proferiu, a manjada frase: “Futebol, religião e política não se discutem”. Ou seja, a nossa organização social enquanto cidadãos de uma sonhada polis democrática ainda carece, e muito, da conscientização de mentalidades de milhões de compatriotas que, submissos às ideologias autoritárias, a líderes populistas salvadores da pátria de toda ordem, se sentem incapazes de empunhar e conquistar sua própria história utilizando o inevitável instrumento da política, sabiamente criminalizado por diferentes segmentos de nossa elite econômica, social e intelectual.

Nesse momento em que escrevo, há poucas horas do horrendo espetáculo de destruição das sedes dos três poderes da república em Brasília por uma horda enfurecida, movimento proporcionado pelos líderes da extrema direita brasileira, reflito sobre o quanto nos falta em consciência política e o quanto é angustiante, para nossa vergonha cívica, o xingamento destinado aos que se submetem ao fascínio verde amarelo: gado!

Ouvi, concordando, o ministro da Justiça em entrevista coletiva proferir a frase: “As palavras têm poder!”. Referia-se à necessidade de as autoridades públicas buscarem pela força da lei todos os que incitaram, formularam e organizaram os atos de terror, cultivados nos últimos quatro anos. Se a premissa é justa e necessária frente aos acontecimentos, ela é também mais um fator de reflexão que deveria orientar com profundidade não apenas os atos de justiça e punição, mas também, e principalmente, os atos de formação da cidadania e da consciência política que precisamos urgentemente implantar e fomentar no país.

Os atos em defesa da democracia posteriores à barbárie de 8 de janeiro clamaram: “Sem anistia”. A referência, a meu ver muito mais dirigida à crítica da eterna conciliação política realizada ao longo da nossa história pelas elites, do que à última anistia que colocou no mesmo nível aqueles que lutaram contra a ditadura militar e os que assassinaram e torturaram enquanto agentes públicos representantes do Estado, é uma boa senha para que o atual governo de reconstrução saiba avançar politicamente e fazer o que é preciso fazer.

A pergunta civilizatória que todos esses fatos da nossa conjuntura, no início de um governo progressista, enunciam é: como vamos superar os hábitos que anulam, ciclicamente, as conquistas que obtivemos?

É evidente que um conjunto de medidas, diversas e plurais, é necessário para estancar a crise imediata das tentativas de assaltos antidemocráticos ao poder. Mas espero que se fomentem programas e ações de médio e longo prazo que procurem emancipar a participação da cidadania na política democrática.

Aprofundar o engajamento político dos brasileiros é algo que já foi captado pelo nosso maior ícone político na atualidade, o presidente Lula, que repetidamente chama a participação social, principalmente para criticar construtivamente o seu próprio governo. O presidente sabe o que fala, a formação política e a necessidade da política são expressões de sua própria trajetória que o tornou uma liderança mundial. Ele a conquistou pessoal e coletivamente, no movimento que elevou parcela dos trabalhadores dos sindicatos aos partidos políticos e ao poder político há pouco mais de 40 anos, irrisório tempo histórico que demonstra a frágil institucionalidade de nossas liberdades democráticas.

Caberá a este governo, que está enfrentando uma onda local e internacional de movimentos neofascistas, valorizar e priorizar em suas ações todos os instrumentos que tiver ao seu alcance para elevar a consciência política de seus cidadãos. Se a conquista humanamente mais urgente e tocante é comida, abrigo, saúde e trabalho para todos, a conquista da verdadeira cidadania, proporcionada pela participação política democrática, é fator preponderante para se garantir um futuro em que não tenhamos mais conterrâneos com fome, desabrigados, doentes e desempregados.

Em outras palavras, a cidadania brasileira precisa conquistar o seu espaço de equidade e de justiça social porque este não lhe será dado. E para que isso aconteça a longo prazo, porque a história se constrói e igualmente não é dádiva, é fundamental que programas e ações emancipatórias e formadoras aconteçam, em proporção e intensidade inéditas, no governo da reconstrução. Me refiro especialmente às políticas de educação e cultura, associadas às políticas de comunicação inclusiva e de acesso universal à internet.

Talvez os horrores a que assistimos em 8 de janeiro tenham escancarado ainda mais o urgente atendimento ao tema da campanha de Lula: “Mais livros e menos armas”. Definitivamente este é o caminho porque livros significam conhecimento de si, dos outros, da natureza, do mundo e armas significam a destruição de si, dos outros, da natureza e do mundo. Cada peça de arte destruída nos palácios da República, cada depredação dos móveis e equipamentos, foram gritos também de ajuda, não a indivíduos, mas ao Brasil que ainda ostenta 88% de sua população com algum grau de analfabetismo funcional (cf. o Indicador Nacional de Analfabetismo Funcional – 2018).

O bárbaro ataque aos três poderes constitucionais expressa o quanto nosso povo pode vir a ser manipulado por ideologias autoritárias, violentas e fascistas. Nessa perspectiva, não basta punir os mandantes. Se é certo que há fascistas convictos por ideologia ou conveniência e que precisam ser reprimidos, igualmente é certo que quem os acompanha cegamente age por outros fatores. Tenho cá comigo que dentre esses fatores, um dos pilares é a ignorância, entendida como a ausência de conhecimento, não apenas o acadêmico e científico, mas todo conhecimento que vem das ascentralidades e das relações empáticas entre os seres humanos e a natureza.

A conquista da democracia brasileira depende da educação e da cultura, estratégias fundamentais de liberdade, e sua viabilização é política.

José Castilho

É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

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